terça-feira, 24 de agosto de 2021

UFOB ABRE VAGAS PARA BOLSA REMUNERADA E VOLUNTÁRIOS DO PIBIEX


Santa Maria da Vitória (Ba) - A Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) anunciou nesta quarta feira (24) a abertura de 41 vagas no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Extensão (PIBIEX). A iniciativa é destinada apenas aos (às) estudantes regularmente matriculados na instituição. São 15 vagas com bolsa de R$ 400,00 (quatrocentos reais) mensais e 26 vagas para voluntários. As inscrições já estão abertas e os (as) discentes interessados (as) devem acessar a seção específica do Programa de Extensão no site da UFOB. [Clique aqui e acesse a página do PIBIEX!]

Nela é possível escolher  um entre os 12 projetos de extensão oferecido e verificar a documentação necessária, além das datas das chamadas para inscrição. Os (as) inscritos (as) serão submetidos (as) a uma seleção cujo resultado será divulgado no dia 08/10/2021. Os projetos serão desenvolvidos entre novembro de 2021 e outubro de 2022.

Devir Cinema disponibiliza duas vagas 

Como projeto de extensão da UFOB, o Devir Cinema Cine Clube foi contemplado com uma vaga remunerada e uma para voluntário (a). Quem tiver interesse em participar deverá solicitar sua inscrição enviando a documentação exigida no edital para o e-mail nedelka.palma@ufob.edu.br entre os dias 30/08 e 03/09 deste ano em curso. [Clique aqui e acesse o edital do PIBIEX destinado ao Devir Cinema, com toda a documentação necessária, pré-requisitos para ingresso e etapas da seleção!]   

Entre os requisitos exigidos para os candidatos constam possuir nota de Índice de Rendimento Acadêmico igual ou superior a cinco, ter noções básicas de interpretação textual e redação, capacidade de criação gráfica para redes sociais, morar numa área com boa cobertura de internet, e, claro, gostar de cinema e de produções audiovisuais em geral.  

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

'A Onda' e seu choque de realidade!

O Cine Clube Devir Cinema exibiu nesta última quinta (18) o filme 'A Onda', de 2008, dirigido por Dennis Gansel. Um filme alemão, baseado em fatos reais, que conta a história de um experimento social realizado pelo  professor de história Ron Jones em uma escola de ensino médio. O filme tem base nesse experimento e no livro homônimo do escritor estadunidense Todd Strasser, de 1981. 

No filme, durante uma semana uma escola secundarista situada no que antigamente era a Alemanha Ocidental oferece aos seus alunos cursos extra sobre política e sociologia. O professor Rainer Wenger (Jürgen Vogel) queria administrar o curso sobre 'Anarquia', com a qual possui uma afinidade maior. No entanto, o curso já tinha um professor titular da escola - aparentemente com uma posição profissional mais valorizada - designado para oferecer a disciplina.

Rainer tenta trocar de curso com o professor, mas a escola não lhe oferece apoio para realizar a troca. Ele tenta negociar com o colega a troca, mas este usa sua posição mais elevada dentro do quadro de professores e se recusa a aceitar abrir mão de ministrar as aulas sobre Anarquia. Rainer precisa se conformar em lecionar sobre 'Autocracia', a instituição de um regime totalitário.

Ele não se conforma com o insucesso, mas se dispõe a dar as aulas sobre um tema que lhe agrada menos. Logo no primeiro dia, a inocência dos seus alunos em pensar que um regime totalitário não pudesse ganhar força na Alemanha após o que foi o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial despertou no professor um misto de vontade de mostrar a seus alunos que estavam errados, fazendo-os entrar em contradição, e de necessidade de se vingar do colega que se recusou a ceder-lhe o posto no curso de Anarquia.

Resolve, então, fazer um experimento social com seus alunos de 'Autocracia' durante a semana de duração do curso. Ele os convence a formarem um grupo com regras de unidade similares ao dos regimes Nazi-Fascistas europeus. Esse grupo se chama "A Onda", que dá nome à obra cinematográfica.

Para realizar a crítica a este filme, precisarei falar sobre eventos da trama que acabarão por dar spoilers. Por isso, se você está lendo este texto e ainda não assistiu ao filme, recomendo que você pare neste momento, e procure o filme para assisti-lo, retornando ao nosso comentário logo após. Se você já assistiu, por favor leia o comentário e, se possível, entre em contato após para concordar ou discordar das minhas ideias sobre a obra.

Ao colocar desta forma, automaticamente está reiterado o lembrete de que a presente análise não se pretende uma verdade absoluta sobre os diversos aspectos que compõem a sua narrativa. Sinta-se convidado (a), inclusive, a debater a respeito.

Roteiro de longa com ar de curta-metragem

O roteiro de 'A Onda' produz um efeito interessante em quem assiste ao filme. A sua fluidez é alicerçada por uma história simples e trata de um evento que ocorre no espaço de uma semana. Após os 107 minutos de sua duração, a impressão é que assistimos a algo muito menor do que um longa metragem. Um filme é classificado como longa a partir de uma duração de 70 minutos, pelo menos.

Mas neste filme a história, sua complicação e seu desfecho se dão de maneira tão objetiva que a memória que tenho dele é de uma sensação de duração bem menor. É curiosa a construção de uma realidade alternativa feita pelo cinema, aonde o tempo é quebrado em sua linearidade, construído e reconstruído ao gosto dos autores de cada obra filmada.

Tanto que estou degustando neste momento um filme em que a trama acontece durante 24 horas e tenho a impressão de que este filme dura muito mais do que 'A Onda', aonde temos a aglutinação de 8 dias. Talvez os autores tivessem a intenção de transmitir a aura de objetividade rigorosa dos regimes totalitários com uma história igualmente sem rodeios, com uma mensagem clara, concisa desprovida de maiores rodeios.

De todas formas, é um filme desprovido de efeitos especiais, com narrativa audiovisual totalmente amparada na interpretação de atores e atrizes. Não abundam jogos de sonoridade nem de câmeras para transmitir a mensagem. Na opinião veiculada por este comentário, há uma crueza característica da obra aonde seu produto final (aquilo que o público vê na tela) se aproxima muito de seu roteiro.

Não sugiro, no entanto, necessariamente uma pobreza do aspecto audiovisual. Estou aqui apenas me referindo a uma característica. Penso, a partir desta característica, que o roteiro da obra é preponderante, e, em diversos pontos, a própria obra. Nele, o personagem principal, o professor Rainer Wenger, de acordo com definições técnicas difundidas pela Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), tem um arco narrativo situado entre a mudança positiva e o arco plano.

Na mudança positiva traumas anteriores fazem a personagem acreditar em uma mentira e a trama caminha para o protagonista superar esses estado de desconhecimento e tudo de ruim que este lhe acarreta em sua vida. No arco plano, o personagem é conhecedor de uma verdade e tenta mudar todos em sua volta para que cheguem a esse conhecimento, ainda que durante a trama ele chegue a duvidar dessa verdade. Trata-se de um personagem que, de certa forma, "rema contra a maré" e essa é basicamente a motivação de toda a narrativa.

Rainer entra em contato com seus alunos e estes lhe questionam logo na primeira aula o sentido de se ensinar sobre regimes totalitários na escola, porque, afinal, todos já saberiam que o Nazismo foi ruim e jamais iriam querer repetir tudo o que ele representou. Isso tornaria desnecessária a invocação da memória histórica sobre esses regimes para uma finalidade de ensino-aprendizagem.

É ai que Rainer se sente desafiado a provar aos seus alunos que eles estão errados sobre isso. Resolve implantar um pequeno regime nazista dentro da sala de aula. Vai implementando regras típicas de uma mentalidade fascista e vai justificando-as didaticamente. Começa por criar para os alunos um conceito de unidade. Força a que todos os alunos com desempenho melhor se sentem ao lado de alunos com desempenho de notas menor, estimulando com que essas duplas se completem. O todo fortalecendo as partes.

Depois força a classe a usar uma disciplina quase militar em uma série de comportamentos que todos devem seguir dentro da aula. Os obriga a tratá-lo respeitosamente pelo segundo nome, a dar sempre respostas curtas e objetivas a uma pergunta, a se sentarem observando a postura. Institui a utilização do uniforme - que não é obrigatório nas escolas alemãs - sob pretexto de que a uniformização faria com que todos no grupo se sentissem iguais uns aos outros.

Por fim, designa um aluno para que construa um logo para o nome daquela unidade recém formada. O nome escolhido foi "A Onda". E, fechando a cereja do bolo, para aumentar o sentimento de unidade, solicitou que todos aderissem a um gesto de saudação toda vez que se encontrassem pela primeira vez no dia. Os efeitos da disciplina se observam na melhora de alguns alunos durante a semana do curso sobre autocracia. 

Alguns alunos, antes desmotivados por crises existenciais provenientes de problemas familiares - o que é normal na adolescência - passaram a ter mais interesse pela escola, demonstrando rápida melhora de desempenho. Assim, 'A Onda' foi ganhando mais adeptos e o apoio inclusive da diretoria do colégio, que classificou os resultados do método de Rainer como positivos, estimulando o professor a continuar com suas práticas.

Neste ponto o roteiro talvez tenha uma inconsistência com a nossa realidade. Não creio que menos de uma semana, alguns poucos dias, fossem tempo suficiente para que alunos mostrassem essas melhoras de desempenhos que convencessem a diretoria da escola a apoiar Rainer em seu método. Essas constatações em um planejamento pedagógico exigiriam verificar que alunos melhoram suas notas, passam a incorrer em práticas positivas em sala de aula, melhora nas competências dos discentes, etc.

Poucos dias não seriam suficientes para essas constatações a ponto da diretora elogiar e incentivar o professor "nazista". Mas, fora isso, o arco narrativo de Rainer é plano, no sentido que ele era conhecedor de uma verdade - a de que um regime totalitarista pode sim ganhar força em um país, mesmo com uma experiência ruim anterior - e ele rema contra a maré da ignorância de seus alunos lançando mão a um método inusitado e controverso.

Mas a finalidade dele não era gerar um micro nazismo que sobrevivesse após o término do curso sobre Autocracia. A finalidade era mostrar a verdade que ele conhecia para seus alunos, mostrando que eles próprios aderiram a um regime ditatorial durante os 8 dias de aulas. Porém, a certa altura do experimento social, o próprio Rainer parece aderir a essa microfísica do poder que ele próprio gerou, impulsionando seus alunos (até sem querer) a expandir a onda para além do limite didático para a qual ela foi criada.

E seus traumas de vida o levam a, digamos, entrar na "Onda". A certa altura, ele revela que se sente um professor de categoria inferior até mesmo à sua própria esposa - que também é professora - por ter seguido uma formação de menor prestígio entre os profissionais de educação no país. E demonstra orgulho pela dimensão do projeto educacional que ele construiu com seus alunos. Ele acredita que fez algo que lhe rende o mérito, inclusive pelo fato de que alguns alunos do curso de Anarquia solicitaram mudança de sala para poder fazer parte da "Onda".

Em uma discussão feia com a esposa, Rainer esfrega esse "sucesso" na cara da mulher, que responde abandonando a casa e dando início em uma separação abrupta ao fim da relação entre os dois. Traumas antigos fizeram Rainer acreditar - em uma boa fração, eu diria - na mentira de que "A Onda" constituía um sucesso em sua carreira de professor.

Ao fim do curso, as atitudes exageradas de seus alunos o fizeram convocar uma reunião aonde deu ordens aos alunos, que as seguiram sem questionar. Em uma delas, dirigindo palavras de ordem em tom alto - igual a Hitler - Rainer inicia o que seria o linchamento de uma dos alunos que questionou "A Onda" nessa reunião. A ponto de ordenar a barbárie - na qual seria obedecido sem resistência - ele muda o tom e lembra aos alunos porque ele fez tudo aquilo.

Lembrou-os de que 'A Onda' surgiu porque os alunos não acreditavam que o Nazismo poderia ganhar força na Alemanha de novo e que por isso era desnecessário estudar sobre esses regimes. Mas os próprios alunos seguiram um regime totalitário com todas as características do mesmo fascismo que levou a Alemanha à Segunda Guerra Mundial e à sua consequente ruína.

Encerrou a existência da 'Onda' dando essa lição aos seus alunos. Nesse momento, ele deixou de acreditar na mentira de que esse experimento era a prova de seu sucesso profissional como educador, experimentando uma mudança positiva. O problema é que um de seus alunos levou a 'Onda' tão a sério que acabou por usar um revólver, após o professor revelar o objetivo do experimento, para matar um de seus colgas e depois se matar na frente de todos.

O professor termina indo preso. Na vida real parece que os eventos foram um pouco distintos, mas houve um desfecho em que o professor foi proibido de lecionar em qualquer escola, encerrando sua carreira precocemente. No filme, tudo é encerrado com o professor indo preso, alunos horrorizados e sociedade (assim como a plateia do filme) perplexa. Uma sequência da história na imaginação nos faz pensar que ocorreria o mesmo com Rainer igual ao professor da vida real.

Um arco de queda ai talvez também, dado ao fato de que tudo deu errado no final - como é típico desse arco narrativo. Não porque o arco de queda tem outras características que não se verificam na atitude de Rainer. Também nesse arco é necessário um protagonista desde o início mal intencionado e desleal ao longo da narrativa, o que não é o caso desse personagem.

Personagem central este que é o único desenvolvido pela trama com uma profundidade maior. O primeiro ato do filme coloca bem suas características - o professor "diferentão" com pouca moral em seu meio profissional - e nenhum outro personagem é tão evidenciado quanto ele. O segundo ato, que onde um filme desenvolve a "aventura" da trama em si - de acordo com a SBC - reforçará esse sentimento meio de fracasso profissional de Rainer e terminará de mostrar a qualidade de questionadora da principal opositora da 'Onda' no filme, a que chamaremos aqui de a 'aluna de vermelho'.

A personagem Karo (Jennifer Ulrich) também termina de se desenvolver no segundo ato, mas isto não chega a gerar um problema para a narrativa do filme, como é comum acontecer com narrativas que não demarcam a apresentação das personagens no primeiro ato. Essa é uma regra apresentada pela SBC, mas que não é necessariamente de seguimento estritamente rígido.  

Misé en Scene simples para uma mensagem objetiva

A Mise en Scène é um termo francês originado do teatro que em cinema significa "tudo o que vemos em cena". Para a SBC, aqui contam apenas os aspectos de imagem e não de som. Essa é a premissa usada por est comentário. Pois bem, não há grandes variedades no trabalho da Mise en Scéne no que tange aos aspectos narrativos do filme 'A Onda'.

Porém, os poucos aspectos que se verificam à primeira vista estão colocados de forma precisa. Já dissemos, não é um filme de efeitos especiais ou de cenas mirabolantes. É um filme basicamente de interpretação dos atores e de difusão da ideia pretendida. Os ângulos de enquadramento não são tão usados para imprimir sentimentos na narrativa - pelo menos não de maneira tão flagrante.

Na Direção de Fotografia, que cuida diretamente de tudo o que vemos no quadro do filme, o destaque é para a psicologia das cores. De acordo com a SBC, existem funções de associação primária para as cores de um lado, e a simbologia que cada filme dá para as cores dentro de seu próprio universo de significações. Duas cores assumem o centro do palco em 'A Onda': o branco e o vermelho.

As cores frias - que são os tons derivados do ciano, especialmente o azul e o verde - estão presentes também, mas de forma complementar à oposição clara do vermelho com o branco. O branco é a cor escolhida por Rainer para o uniforme da 'Onda'. Outra parte do uniforme é a calça jeans, ostentando o azul sempre associado primariamente à 'frieza' e à 'tristeza'. O autor quis mostrar que a 'Onda' leva seus integrantes à uma triste perda de sua individualidade com essa combinação. Quem sabe?

Mas o branco aqui é símbolo da unidade que representa a 'Onda'. E mais do que perda da individualidade - o que qualquer cor poderia representar estando na lógica de um uniforme - é, na opinião desta crítica, o signo visual que atesta o vazio existencial das personagens que aderem à 'Onda' no filme. Esses adolescentes - como é comum nessa etapa da vida - se sentem vazios de sentido em suas vidas e aquele grupo de características nazistas veio para preencher esse vazio.

Mas o preenche com nada, algo bem representado com esse branco. Apenas uma noção de unidade socialmente construída. A unidade, de fato, não existe. Foi instituída em um discurso com objetivo de dominação. Os alunos foram manipulados por Rainer e o vazio do sentido da vida foi usado para isso. São personalidades vazias à espera de um líder que lhes diga o que devem fazer e como devem se comportar.

O momento mais emblemático dessa unidade "vazia" que representa a onda é a cena aonde Rainer ordena aos alunos que se levantem e comecem a marchar com passos fortes, sem sair do lugar, buscando que o som das pisadas formem um uníssono, aonde formarão uma coisa só. O objetivo, além disso, era perturbar o professor de Anarquia, cuja sala estava situada exatamente abaixo no prédio da escola.

Este momento é o que o branco da unidade passa a representar o fator que leva todo regime fascista a ter sucesso em uma sociedade. A imposição de sua comunicação. No símbolo do filme, os "brancos" nazistas abafam a voz dos opositores pelo uso da imposição, com a força que a unidade lhes dá. É uma imposição violenta e inaceitável. Porque os "fascistas" passaram a impor a sua voz. O branco é a cor usada no filme para capitalizar essas atitudes.         

O outro momento desse aspecto da comunicação é quando Rainer ordena a um de seus alunos que faça uma logo da 'Onda'. O branco passa a ganhar seu complemento com o signo da 'Onda' usado, primeiro em vermelho, depois em preto, que é a sua versão final. Os alunos passam a pichar esse símbolo por toda a cidade, impondo sua unidade para todo o meio social por meio de uma atitude de vandalismo - por tanto, uma comunicação processada em uma ação de violência.

A oposição ao branco é feita pelo vermelho, associada no filme primeiro à 'anarquia', ao 'comunismo'. Uma das alunas questiona a 'Onda' desde o início e acaba por ser discriminada e excluída. A blusa que ela está usando nesses momentos é sempre vermelha. Mas não é bem o sentido inicial o do vermelho o que ele representa no filme. Sim, a garota discriminada o usa mas, para esta crítica, sua finalidade é outra. 

Se o branco é o início motivador da narrativa, podemos dizer ele é a 'origem' dos eventos do filme. A 'causa'. Pois então o vermelho opositor é o 'fim', é a 'consequência' o 'desfecho'. E em se tratando da mensagem crítica do filme, ele representa exatamente o que os regimes totalitaristas, como são o fascismo e o nazismo, acarretam. A moça discorda veementemente da 'Onda'. Ao fim de sua peregrinação em mostrar o mal que aquela unidade 'branca' representa, ela tem uma discussão com seu namorado, que também é integrante da 'Onda'.

E este covardemente a agride, no calor do bate boca, com um soco no nariz. O próprio rapaz se surpreende com sua atitude. Nem ele imaginava que era capaz de algo tão repugnante e covarde que é bater na cara de uma mulher. A garota sangra pelo nariz com a agressão e aí está a função final e verdadeira do vermelho. É o sangue derramado pela violência que a lógica nazista promove ao se desenvolver num meio social.

Essa função sangrenta do vermelho, remetida à 'violência' que é típica do fascismo, aparece em outros momentos da história. Quando Rainer dá carona a um de seus alunos, que insistia que o professor precisava de que alguém lhe fizesse a segurança, ele é surpreendido com uma bola de tinta que é atirada por alguém no para-brisa, deixando o vidro todo manchado. A cor da tinta é vermelha, indicando a oposição à 'Onda' bem como ao caráter violento dessa ação.

O outro momento é no clímax do filme  (a cena para a qual o filme existe e no qual sua história culmina) aonde esse mesmo aluno, ao perceber que a 'Onda' não existe de fato e que era só um experimento social do professor, se mata na frente de todos.

Direção de Arte fundamental na significação

Filmes com orçamento menor como este dependem de um bom desempenho de seus atores - ao qual esta crítica dá uma avaliação de razoável para boa - e de uma boa desenvoltura das demais camadas de um filme, especialmente a direção de Fotografia e de Arte. Esta segunda tem papel muito importante para a simbologia do filme 'A Onda'.

Citamos o suicídio do aluno no clímax do filme, abrindo o final do terceiro ato (e da história), tendo apenas a sequência de planos que constituíram a cena de epílogo - geralmente a cena que dá fechamento mais coeso para o filme. O rapaz primeiro ameaça todos os presentes na sala aonde Rainer revela que a 'Onda' era só um experimento social com intuito de provar aos discentes que um regime fascista pode sim ganhar força na Alemanha outra vez. 

Ele já tinha apontado esse revólver para um anarquista que tentou agredir os membros da 'Onda' quando estes estavam no trabalho de pichar o emblema da unidade por toda a cidade. Quando o rapaz foi questionado pelos amigos pelo perigo de portar uma arma, ele disse que estava tudo bem porque as balas eram de festim.

Quando ameaçou a todos na reunião da cena do clímax, todos acharam que a ele não representava ameaça porque as balas seriam de mentira. Ele então atira para matar um dos colegas e mostrar que a ameaça era verdadeira. Após ser convencido por Rainer a não matar mais ninguém, o rapaz coloca o cano do revólver na boca e dispara a arma, cometendo suicídio em um verdadeiro desastre.

A Direção de Arte é a área do filme que cuida de todos os objetos não humanos que aparecem na tela. Cenários, maquiagens, apetrechos e todos os objetos são de sua responsabilidade. Aqui o revólver representa a força bruta armada do fascismo, à qual seus integrantes vão aderir para tomar o poder à força. O fascismo usa da violência armada para impor sua comunicação, seu regime, e no filme esse revólver aglutina esses fatores.

É por ele que a cor vermelha se manifesta no ato final, mostrando que essa cor é o sangue desnecessariamente derramado toda vez que uma organização nazista se processa e se impõe em uma sociedade. O mesmo vermelho da blusa da aluna opositora. Na cena epílogo, logo após o clímax, essa aluna usa uma blusa com a cor roxa. Essa cor é usada no cinema geralmente para indicar algo bizarro, algo horroroso. É uma cor recorrente nos filmes de terror e horror, por exemplo.

Ela de fato foi esmurrada pelo namorado e a blusa é usada para mostrá-la sobre efeito dessa ação horrorosa que ela sofreu. O objeto identificado como sua blusa, processando a psicologia das cores do filme, fala tacitamente por si e é parte fundamental para a narrativa se processar nesses pontos culminantes da história.

Outro objeto que merece destaque são os panfletos com um manifesto contra a 'Onda' que essa garota de vermelho tenta imprimir e distribuir no colégio. Quando os integrantes da unidade percebem, eles os recolhem e os reúnem para queimá-los. Esse panfletos são a oposição à difusão da logo da 'Onda' e representam a comunicação dos opositores ao regime fascista. Comunicação que esses regimes tentam silenciar a todo custo, como acontece no filme.

Ela consegue distribuir os panfletos durante o jogo de polo aquático que a turma da unidade tem contra outra turma. Durante o jogo, a garota de vermelho consegue sua manifestação massiva contra a 'Onda', o que culmina com a irritação do namorado e a consequente briga aonde este lhe dá o murro na cara. E aqui é a deixa para outro aspecto da Direção de Arte que é justamente os momentos do filme em que os treinos e o jogo esportivo aparecem.

Uma das mostras de que a 'Onda' promoveu algo positivo para os alunos é justamente o desempenho do time de polo aquático. Como se sentiam em uma unidade, os alunos desenvolveram um senso de equipe mais aguçado, o que melhorou o rendimento do time na piscina. O esporte era uma das ferramentas que Hitler gostava de citar como prova da superioridade ariana sobre as outras raças. Isso, claro, até Berlim sediar os jogos em 1936 e a equipe de atletismo dos Estados Unidos, composta majoritariamente por negros, conquistar o maior número de medalhas nos jogos, muito à frente dos atletas arianos.

No filme o esporte é representado por estes momentos do polo aquático - os treinos e o jogo. A 'Onda' fez com que o time melhorasse, mas quando estava para ganhar o jogo decisivo, a agressividade que essa unidade aflorou nos alunos fez com que um deles agredisse um rival que o provocava, levando ao cancelamento da partida. E o treinador do time também era o professor Rainer.

Assim, os objetos relativos ao polo aquático - as sungas, as tocas, os ósculos, a bola e bem como o cenário da piscina junto com as arquibancadas - constituem o meio audiovisual pelo qual a Direção de Arte é usada para gerar significação de maneira tácita no filme. A hora do polo aquático constituem sequências de planos e cenas em que a narrativa descansa os espaços e momentos predominantes do filme - a saber, a sala de aula e a rua - dando um necessário descanso ao público desses momentos e colaborando decisivamente para a fluidez objetiva da mensagem do filme.

Conclusões (preocupantes)  

A 'Onda' é um filme com objetivo de mostrar como um pensamento de ordem fascista pode ocupar o vazio de significado na vida das pessoas e surgir com toda a força em uma sociedade. Mesmo que a história já tenha mostrado todo o ciclo de violência e barbárie que ele promove ao eclodir em qualquer lugar que se manifeste.

É um filme com ritmo objetivo, trabalhado em formato de longa metragem mas cujo desempenho se dá de maneira objetiva na transmissão de sua mensagem, dando (pelo menos para este jornalista que vos fala) a impressão de que se assistiu a um média metragem, no fim das contas. Há poucos furos no roteiro e que não chegam a comprometer a narrativa.

O principal elemento do filme, por incrível que pareça, não está nele próprio mas no choque de realidade que a 'Onda' promove em quem o assiste e se propõe a fazer-lhe uma leitura crítica no seu conteúdo. Elementos daquele acontecimento - que é baseado em fatos reais - estão se processando em nossa sociedade de forma perigosa.

Vivemos em um mundo aonde as pessoas buscam preencher os vazios existenciais seguindo unidades que seguem lógicas muito similares à 'Onda'. Pessoas que estão indo às ruas, por exemplo, para pedir a volta da Ditadura por um novo Ai 5. Isso é grave e poucos se deram conta do real perigo que isso representa.

Como no filme, as pessoas estão justificando que isso é bom para um país. Na ficção, alunos tentam defender que a 'Onda' tinha coisas positivas e que valiam a pena defender. Mesmo que significasse a instauração da violência e o fim das opiniões diferentes às da 'Onda'.

E o final disso, como no filme, se não for combatido a tempo, é o vermelho do sangue e da morte, o horror proveniente da intolerância, o fim dos direitos individuais, tão necessários para exercermos uma humanidade verdadeiramente sadia.

A diferença é que não teremos a opção de desligar o projetor se isso acontecer em nosso "filme" aqui da vida real.

Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.                   

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

DEVIR CINEMA REALIZA DEBATE PARA RECEPÇÃO DE CALOUROS DA UFOB!


 

O Cine Clube Devir Cinema está de volta às atividades! E para começar os trabalhos em 2021, promoverá o debate sobre o filme 'A Onda', de Dennis Gansel. O grande retorno após a Mostra Virtual com o Devir Negro, em homenagem ao mês da Consciência Negra no ano passado, será nesta próxima quinta feira (18), com exibição do filme às 17h30 e apresentação das professoras Jancileide Souza e Nedelka Palma a partir das 19h30 - todos os horários de Brasília. 

A atividade é parte da Semana da Integração promovida pela Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e tem o objetivo de dar as boas vindas aos novos alunos da instituição, convidando-os para um momento de transformação do pensamento por via da 7ª arte. O evento virtual é aberto a todo o público e rende certificado para aqueles que realizarem a inscrição.

Para participar da sessão e do debate faça a inscrição primeiro [Clique aqui!] e acesse a sala onde será exibido o filme no dia e na hora do evento [Clique aqui para acessar a sala de encontro!]. Se você ainda não possui o aplicativo do Google Meet, é necessário baixá-lo para acessar a atividade [Clique aqui para baixar o Google Meet!]

Maiores esclarecimentos, acesse nosso perfil no Instagram com link para inscrição ou mande uma mensagem pelo e-mail devircinema@gmail.com



domingo, 13 de dezembro de 2020

O 'NOSSO' DILEMA NAS REDES

Skyler Giosondo, no papel do personagem principal fictício
O Cine Clube Devir Cinema encerrou na última sexta (11) com chave de ouro a sua primeira Mostra Virutal. O filme em apreciação foi o documentário dirigido por Jeff Orlowski "O Dilema das Redes". O estilo é de 'Doc Ficcional' usado para uma denúncia aos efeitos perniciosos do mundo digital conectado por encantadoras - mas perigosas - redes sociais (Facebook, Whats App, Instagram e etc.), aonde acontecem as entrevistas com alguns dos homens e mulheres que ajudaram a formatar as tecnologias que servem até hoje de suporte para essas redes, intercaladas com narração introdutória dos subtemas e com momentos de dramatização ilustrativa das informações e ideias veiculadas pelo produto final. Ele perde em seu desempenho geral um pouco de sua força comunicativa. Isso porque escolhe, para esta parte fictícia, uma linguagem hollywoodiana que o assemelha a um filme de baixa qualidade, (mal) copiado dos moldes do cinema estadunidense num nível bastante fraco. 

A certa altura, essa parte "dramatizada" do documentário parece aqueles seriados teen, com predomínio de atores adolescentes em início de carreira e mais propensos a um desempenho apenas regular de suas trajetórias artísticas, o que os deixa mais próximos de papéis adaptados para a linguagem da TV. E ai mais aptos a programas humorísticos filhotes do Chaves - aqueles onde as risadas artificiais de uma plateia imaginária são controladas em volume e intensidade por botões numa mesas de som, como Friends, How I Meet Your Mother ou The Big Bang Theory. Desde já deixando claro que esta crítica não tem nada contra esta vertente do audiovisual e de jeito nenhum visa a menosprezar o trabalho dos atores que transitam por ela - sendo, inclusive, o jornalista que aqui vos fala por escrita fã das séries mencionadas e de vários de seus atores e atrizes. 

A parte deste momento cinema a la "Trapalhões e a Princesa Xuxa", um cinema com desempenho bem medíocre em termos das possibilidades potenciais da 7ª arte, a parte ficcional do documentário se aproxima mais de uma linguagem cinematográfica de fato em uma de suas cenas próximas do desfecho aonde a abertura de plano nos remete a algo parecido com Matrix. Aquele momento em que Neo desperta para o mundo real no ano de 2600 (aproximadamente) e vê toda uma humanidade presa a cubículos recheados de um gel rosado e sendo iludidas de que vivem no fim da década de 90, tal e qual esta foi.

Na verdade estão a vida toda mergulhadas em uma realidade neuro-interativa e tendo sua energia corporal sendo aproveitada por máquinas dotadas de uma super inteligência artificial que acabou por se transformar em uma forma de vida mais evoluída do que os seres humanos. Essa lógica de inferno no sentido mais profundo das teorias comunicativas da corrente "apocalíptica", por assim dizer, da Escola De Frankfurt, em expoentes como Adorno e Horkeheimer, coloca o ser humano irremediavelmente preso às lógicas de domínio de sua própria indústria cultural, caminhando para uma inexorável  autodestruição pela submissão de si mesmo e pelo esgotamento dos recursos naturais para a inquestionável lógica do lucro. 

Esse clima é quebrado pelas cenas finais em que há uma clara mensagem em sentido contrário a um pessimismo sobre o destino final da relação dos humanos as tecnologias e sua própria autoria. O cinema oferecia a este documentário um leque tão grande de linguagens próprias tão mais ricas para esta parte de diegese fictícia, mas seus autores optaram pela via mais pobre que tinham à mão. Falta de orçamento? Falta de visão cinematográfica mais ampla para além das receitas acabadas do cinema estadunidense e sua primazia por um caráter mais industrial da sétima arte? Quem pode saber além dos próprios realizadores da obra, não é mesmo? 

No entanto, não há um pecado original da comunicação, vamos dizer assim, a ponto de tornar a interessante e importante mensagem do documentário inviável ou prejudicada ao patamar da total ineficiência ao se transmitir. E quem assiste a "O Dilema das Redes" deve ter isso em conta para melhor aproveitar o conteúdo trabalhado pelo documentário.   

Nunca é demais lembrar que a presente crítica não se pretende verdade acabada e absoluta sobre a peça cinematográfica em apreciação. É apenas a visão do jornalista a serviço do Cine Clube Devir, Paolo Gutiérrez, a respeito. E, como sempre, o aviso importante de que se por um acaso você está lendo esta crítica e ainda não assistiu ao documentário, veja-o primeiro [Clicando aqui para baixar o filme e aqui para baixar as legendas, salvando os dois arquivos na mesma pasta lado a lado!] antes de prosseguir.   

Vejamos então algumas destas importantes ideias que o "Dilema das Redes nos Traz".

Roteiro orientado para o desenvolvimento de um raciocínio presente em uma denúncia

Tristan Harris, "personagem" principal real 
Pois bem, estamos falando aqui de um Doc Ficcional, um documentário com personagens reais dando entrevistas sobre um assunto pretensamente merecedor do nosso olhar e que, concomitante a isso, trabalha uma narrativa dramatizada para que esta lhe sirva de suporte à mensagem veiculada. A parte fictícia segue o modelo básico de roteiro de Hollywood, com 3 atos se desencadeando - o primeiro apresentando as personagens relevantes da "trama", o segundo colocando a "aventura" em si e o terceiro com o clímax da história, a cena para o qual o filme existe, e um posterior epílogo para complementar e encerrar sem vazios a narrativa.

A parte 'real', segue o raciocínio de um artigo escrito, aonde se apresenta o objeto para o qual o autor lança o olhar, o critica, o problematiza, comprova seu ponto de vista com dados, e finaliza sugerindo soluções para o 'problema'. Os dois eixos do documentário, o 'real' e o 'ficcional', desta forma, convergem para uma grande denúncia de um efeito pernicioso das redes sociais da internet e que pode estar colocando em risco conceitos sedimentados das sociedades em todo o mundo, tais como a democracia, as liberdades individuais. 

E mais do que isso, coloca como as Fake News conseguiram gerar um universo de mediação da realidade aonde grandes mentiras - como a Terra ser plana, por exemplo - chegam ao ponto de serem consideradas verdades incontestáveis por grande número de pessoas. O roteiro trabalha bem organizando essas sequências destinadas a desenvolver esse raciocínio de denúncia. Nada assim revolucionário em termos da linguagem típica dos documentários. Trabalhando com planos aonde os entrevistados estão geralmente sentados, alguns enquadramento intencionais.

O ritmo do filme trabalhada com aquela batida única, recheado de pontos em que se descansa o olhar do espectador para deixar a construção de raciocínio menos arrastada e enfadonha. Alguns pontos de "entrevista" quebram o protocolo do depoimento sentado e colocam o 'especialista' como se estivesse (e está, nessas partes) dando uma palestra, conversando. Assim o roteiro estabelece um andamento mais dinâmico, nos dando sensação intermitente entre estarmos vislumbrando entrevistados desenvolvendo o assunto - como se fôssemos nós os entrevistadores até - e estarmos sentados em uma plateia imaginária dessa "palestra".

O outro ponto de quebra da linearidade para não deixar a linguagem do documentário enfadonhamente arrastada em seu desempenho audiovisual é justamente a parte ficcional, na qual vamos ao universo do pequeno filme ficcional sendo contado para ilustrar a ideia central do documentário. O roteiro procede para gerar uma pequena quebra de momento paralelo entre o momento 'real' e o 'fictício'. O uso dos sons, especialmente a fala dos entrevistados, invade em vários momentos o "filminho", comunicando ao espectador uma leve fusão entre a realidade e a ficção, buscando reforçar o conteúdo transmitido com isso, determinando a imagem que nosso próprio cérebro faz quando nos expõem ideias verbalmente veiculadas.

Nessa narrativa de face dupla, o personagem central fictício tem um arco narrativo da mudança positiva, crê na mentira de que precisa de seu celular o tempo todo para efetuar comunicações válidas e aquisição de informações para as ideias que ele próprio faz do mundo. No final, ele caminha - literalmente - para a superação desta mentira típica de seu arco narrativo e muda de forma positiva para uma relação mais humanizada com a tecnologia, por tanto mais saudável.

Aqui vemos um efeito da fusão do 'real' com o 'ficcional'. Na história contada pelas entrevistas, há um personagem central também, o primeiro e o último a falar. Aquele que aparece dando palestra. O que mais fala durante todo o filme. O ex-executivo da Google, Tristan Harris. Se há uma lógica de artigo escrito em "O Dilmea das Redes" na forma como sua narrativa é construída, este, sem dúvida, seria o autor do artigo. Ele acaba por ganhar um arco narrativo plano, aonde o personagem conhece uma verdade e tenta a todo custo convencer todos ao seu redor desta verdade.

Ele busca mudar o mundo positivamente. E talvez, pegando essa lógica da fusão entre 'real' e ficção', ele consegue mudar uma pessoa - o personagem principal da parte fictícia do documentário, mesmo que este não tenha escutado sequer uma única palavra do que o personagem principal "real" disse.

A Mise en Scéne trabalhando pela denúncia do doc

E curioso que esse efeito fundido de realidade com ficção, de informação com interpretação de atores, coloque em jogo a Mise en Scéne, que é tudo aquilo que vemos no quadro da imagem ao longo do filme. É um termo oriundo do teatro, segundo a Sociedade Brasileira de Cinema, que vem do francês para designar tudo o que está em cena. Para documentários é mais difícil falar neste termo, porque se pressupõe que sua mensagem não se processa por uma ação comunicativa dramatúrgica. Se trata de retratar a realidade e não de gerar uma realidade dramatizada.

Mas, como "O Dilema das Redes" lança mão a um recurso fundido, acabamos por falar na 'cena', e não só para a parte de "mentirinha", encenada por atores. Por exemplo, no primeiro momento de palestra do personagem principal 'real', a plateia está vazia. É o cenário mostrando o que ele diz no começo, que se atentou para os efeitos perniciosos das redes na internet, dentro de uma das gigantes, para a qual ele trabalhava. Foi mostrado com um aspecto de cenário como o discurso veiculado pelo documentário é um discurso que não interessa às pessoas de um modo geral. Uma Direção de Arte ai talvez agindo para se veicular um aspecto da narrativa - o "personagem" central remando contra a maré em seu arco narrativo pano?

A cena ficcional mais comum é uma sequência de planos aonde três pessoas estão em um lugar fechado, tentando formatar o avatar do personagem principal ficcional. No início, ele é um boneco disforme, e, à medida que o filminho vai passando, ele vai ganhando cada vez mais o formato humano e preciso da pessoa a que ele corresponde. Estes três personagens aqui representam os algoritmos das redes sociais cuja tarefa é usar informações disponíveis sobre os usuários da rede para lançar em sua tela particular informações e promoções que o manterão mais tempo conectado e que o estimularão a dar mais cliques - o que aumenta o lucro dos donos dessas redes sociais.

O avatar ai seria um boneco virtual que vai se transformando, mostrando como os algoritmos passam a nos conhecer tão bem que a projeção que fazem de nossas pessoas é cada vez mais perfeita. Falaríamos ai de uma Direção de Arte Virtual, possivelmente? Alguns dirão que não porque se trata de um efeito especial, o que não entraria como um "objeto", uma "coisa", por tanto fora da jurisdição da Direção de arte. Mas esse efeito é um "objeto" dentro da narrativa do filme. De repente ai, ele é uma categoria supra de substantivo, usada com a lógica de uma Direção de Arte, na opinião desta crítica. 

Se Bruno Albuquerque, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), cujo curso sobre as 7 camadas de um filme são a base para todos os conceitos técnicos trabalhados nesta crítica, pudesse algum dia dar sua valiosa opinião sobre isso - ou outros especialistas em cinema - seria de grande valia. Mas a discussão não interessa no momento. Aqui o avatar na verdade é ponto de partida para outro aspecto de cena presente tanto na parte 'real' como na parte 'ficcional' do documentário.

Primeiro, esse avatar é formado, predominantemente, por jovens. É um jovem no avatar específico que colocamos, são os jovens no conceito que representa o avatar dentro do filme. Os 'especialsitas' que dão entrevista analisando o aspecto ruim da rede social - e que é denunciado pela ideia central do docuemntário - são todas pessoas com idade mais avançada. Ou jovens adultos acima de 30 anos pelo menos. Nas duas linhas de narrativa fundidas - a 'real' e a 'encenada' - todos os principais afetados pelo aspecto pernicioso da rede social são jovens. Nenhum depoimento de pessoas "conscientes" desses efeitos é jovem, no sentido extremo da palavra - adolescente ou jovem adulto na faixa dos 20.

O que delimita a denúncia do filme a um público específico. Nesse aspecto, quando a "palestra" do personagem principal da realidade vai ganhando mais público, este é o de pessoas mais velhas. As pessoas mais novas não fazem coro ao que está sendo denunciado. Talvez isso explicasse a linguagem cinematográfica teen da parte ficcional do documentário? Uma tentativa de que seu conteúdo pudesse ser eventualmente assistido por alguém extremamente jovem? Uma tentativa de diálogo com esse público, ao se tratar de um tema que é "chato" para adolescentes? 

Se sim, ai talvez uma linguagem cinematográfica mais rebuscada talvez fizesse esse propósito se perder. Adolescentes não ligam para o desempenho artístico do cinema. Não consomem cinema mais "intelectualizado", por assim dizer. Abandonam um filme se ele exigir demais do cérebro do espectador. É uma possibilidade bastante real. O conteúdo da parte 'real', com informações e discussões, só é interessante para alguém de uma geração anterior a essa que temos hoje. Faria todo o sentido inclusive na escolha do ator da personagem principal - alguém que se parece com um jovem normal, um adolescente ainda na escola e começando a sua jovem vida com todo o tempo pela frente.

Como se os autores dissessem, "nosso personagem real é um adulto mais envelhecido transmitindo uma mensagem que pessoas mais velhas estão aptas a ouvir, a ter paciência para processar, por isso precisamos de uma parte fictícia que possa dialogar com esse público jovem em alguma media". Talvez (talvez) seja esse o motivo da parte ficcional mais fácil de digerir por um público menos experiente, mais inquieto e, por esse mesmo motivo de hormônios mais intensos pela pouca idade, menos toletrante com um produto final audiovisual mais intelectualizado. É uma possibilidade.

O segundo aspecto desse momento do avatar em formação, é o cenário. Os planos entre os 3 algoritmos formando um boneco cada vez mais perfeito geralmente são entre médios e americanos. Ainda quando mais abertos - um nível acima do plano americano, que pega dos joelhos para cima -, se vê que eles estão em um lugar fechado, restrito e específico. Perto do final do filme, chegando no 3º ato e no clímax, esse plano irá abrir para um plano geral aonde se percebe que os algoritmos lapidam o avatar em um cubículo.

E que centenas de milhares de outros cubículos (assim sugere a imagem) iguais a esse estão processando a mesma atividade. Uma humanidade inteira dominada por uma inteligência artificial. A tomada de empréstimo de Matrix em temática, fotografia e direção de arte aqui é inegável! O interior do cubículo é escuro, e tem como predominante a cor azul na iluminação. Essa cor fria, geralmente usada pelo cinema hollywoodiano para expressar tristeza, representa uma aspecto de "falta de humanidade" neste documentário em apreciação. Isso é óbvio! Querem transmitir que é "triste" o que está se fazendo com o usuário da rede social - especialmente com o usuário jovem.

Nesse plano mais aberto que mostra os cubículos, e no qual o espectador é convidado a se sentir como Neo quando acorda da Matrix pela primeira vez, as bordas dos cubículos estão em vermelho, cor usada comumente para manifestar uma situação de perigo, pela associação do vermelho com o 'sangue' oriundo de violência, com o sinal de alerta no trânsito com o "pare" das placas e do sinal do semáforo. A Mise en Scéne comunica ao espectador, de forma silenciosa, que a atividade dos algoritmos é 'desumana', 'fria' e 'perigosa'. 

Essas cores e jogo de luz são amiúde usadas no reino 'real' do filme. A maioria dos entrevistados está depondo em um local de luz baixa e quase todos usam roupas que fogem das cores mais 'quentes', as alaranjadas, que remetem à alegria. A maioria usa roupas ou em branco e preto, ou em azul. Marca a seriedade do assunto, a gravidade do que está sendo veiculado. Que esse cubículo representado pela Mise en Scéne ficcional tem levado as pessoas a se encerrarem em um mundinho virtual orientado a acentuar as preferências prévias de cada usuário.

Assim, gera-se um micro universo virtual em torno de cada pessoa destinado a obter mais cliques, o que impulsiona o ganho monetário dos donos das redes sociais, ao oferecer aos anunciantes um público já prospectado, ou seja, pelo perfil mais próximo da marca ou dos produtos de cada grande empresa. O problema é que esse cubículo acaba por reforçar preconceitos e inverdades que cada pessoa está propensa a acreditar porque a rede social lhe oferece o mundinho feliz da ratificação daquilo que cada um está propenso a acreditar.

Os algoritmos não tem nenhuma orientação de evitar a circulação de mentiras pela internet. Pelo contrário, se essas mentiras gerarem mais cliques - e, portanto, dinheiro - para aquele usuário que o algoritmo tenta "seduzir", ele irá direcionar postagens, sites, e outras pessoas que acreditam naquela inverdade, dando à mentira um patamar de 'verdade' para essas pessoas. Verdade cada vez mais absoluta e inquestionável. Isso tem influenciado eleições com resultados catastróficos em todo o mundo, na medida em que candidatos exploram essa lógica, difundindo "notícias falsas" sobre si e sobre seus adversários.

Chegamos ao ponto de boa parte da humanidade acreditar que a Terra é plana ou de mulheres defenderem com unhas e dentes políticos machistas, por exemplo. Negros votando em candidatos racistas, trabalhadores aceitando ideias nas quais seus direitos serão diminuídos, e por ai vai. Fatos inverídicos serem tomados como verdadeiros por lógicas de absurdas teorias conspiratórias - como pessoas acreditarem que o Corona Vírus foi desenvolvido para derrubar os Estados Unidos como principal economia para a ascensão da China.

Muito pior, nessa linha, acreditarmos que o vírus é uma criação do mundo comunista feito para gerar pânico e derrubar o sistema capitalista ao promover um isolamento social "desnecessário"(!!!!!!). Seria uma doença sem grandes perigos e que o certo é não nos cuidarmos, continuarmos nossas vidas como se o vírus não existisse em prol da economia e da circularidade do grande capital. Veja como nesse sentido a Mise en Scéne de "O Dilema das Redes" promove uma fusão de 'real' e ' fictício' que está de fato sendo produzida na sociedade pela ação dos algoritmos a partir das redes sociais.

Dessa forma, a palavra de um cientista sobre um vírus, amparada em pesquisas, dados, informações, constatações com ferramentas profissionais de alta precisão, vale menos para mim do que a Fake News promovendo um reino imaginário e fantasioso. E por que isso? Porque a palavra do cientista é desfavorável ao discurso de meu político de estimação. Prefiro então me esconder no meu cubículo formado pelas redes sociais, aonde logo o algoritmo vai me fornecer alguma postagem com uma teoria conspiratória que, pra mim, vai fazer mais sentido do que um dado científico.

Efeito consolidado pelo (lucrativo) reforço dos algoritmos ao nosso mundo feliz aonde todas nossas opiniões são a verdade absoluta. A Mise en Scéne de "O Dilema das Redes" produz um efeito muito similar a esse mundo surreal que estamos vivendo hoje - narrativas do mundo da imaginação tomando o lugar do mundo real. Um efeito totalmente surreal.

Conclusões

O documentário "O Dilema das Redes" é, para termos da arte cinematográfica, um produto final audiovisual bem abaixo do que as possibilidades, o potencial, do cinema oferece. No entanto, tem uma mensagem trabalhada com um nível de criatividade razoável o suficiente para captarmos a mensagem que transmite e nos alertar de um perigo real. E às vezes, até essa qualidade artística inferior pode ter sido intencional.

Ao fornecer a informação de que "apenas aqueles que usam as redes sociais e os consumidores de drogas são chamados de 'usuários' ", somos levados a perceber a droga poderosa e avassaladora que pode se tornar em nossas vidas o simples hábito de pegar o celular e clicar em postagens e anúncios, revelando nossas preferências para algoritmos que as usarão para nos dar o mundo perfeito que concorda com todos nossos gostos e opiniões.

E que irá reforçar esse "país subjetivo das maravilhas" enquanto isso for lucrativo para as grandes corporações em ação no planeta. Não importa se levarão o ser humano para uma realidade próxima daquela prevista pelos filósofos e sociólogos da velha Escola de Frankfurt - uma sociedade mergulhada no caos da dominação do ser humano por si mesmo e pelas tecnologias que ele mesmo criou. 

Não importa se isso vai gerar um planeta aonde as pessoas acreditam que a democracia não é válida, aonde o assassinato de mulheres por motivo de machismo seja algo válido, ou aonde a morte de uma pessoa por exposição a um vírus perigoso seja algo "aceitável" porque o sistema não pode parar.            

Por outro lado, será que a exposição de documentários como este não é intencional para que gente como Mark Zuckerberg, dono do Facebook, digam lá na frente que estávamos todos cientes do que poderia acontecer ("tanto que alguns dos meus ex-funcionários fizeram um documentário como esse"). Até que ponto essa exposição feita por ex-funcionários do Google, do Instagram, e etc, não faz parte do jogo de cena que esse teatrinho constante dos grandes grupos dominantes no planeta nos levam a acreditar com único objetivo de que continuemos a aceitar nossa posição inferior?

Zuckerberg chega a aparecer no documentário sendo questionado por esses efeitos e sugerindo... adivinhem... um novo algoritmo que possa regular tudo. No fundo não estavam mostrando a imagem do figurão em algum nível "preocupado" com os efeitos negativos de suas redes sociais? E se, ao divulgar um documentário como esse "Dilema das Redes" apenas será um álibi lá no futuro pra dizer, "olha vocês sempre concordaram com tudo, nada foi feito sem o conhecimento de todos".

E se a exposição dessas verdades mostradas no documentário forem apenas uma verdade parcial, mais amena do que a verdade de fato? E se nos monitoram muito mais do que aquilo que está ali revelado? Difícil dizer. O mais certo é questionarmos sempre toda informação que nos chega, aproveitar essa dica valiosa que está no filme. Não precisa-se entrar numa paranoia aonde nada é fato, tudo é manipulado. Mas buscar um olhar crítico em tudo o que nos é "informado". Lembrar a quem interessa essa "informação" e se ela não é de fato uma grande mentira.

Afinal, o elemento da Direção de Arte de nossa vida real, o celular, é um 'vilão' que pode ser nosso 'aliado'? No fim o filme não está querendo que privilegiemos essa perspectiva positiva da tecnologia? E não o estaria fazendo, da mesma forma que um algoritmo, operando essa informação em nosso nível subconsciente? Afinal, sabem que já vivemos mergulhados nessas tecnologias e não vamos deixar de usá-las, de todas formas. Talvez queiram, com filmes, amenizar a visão negativa da lógica desumana e mercadológica que supostamente esses mesmos filmes dizem criticar. É uma possibilidade.     

Olhar crítico é necessário e útil sempre, inclusive em documentários como "O Dilema das Redes".
   
Paolo Gutiérrez é jornalista crítico amador de cinema.

               

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Devir Cinema coloca em xeque a própria internet com "O Dilema das Redes"!



Último debate da Mostra Virtual do Devir Cinema! Nesta próxima sexta (11), às 20h (Brasília) mais um documentário para colocar em xeque os conceitos do mundo à nossa volta. E nada melhor pra isso do que questionarmos o "encantado" mundo das redes sociais que nos cerca! Em apreciação o filme "O Dilema das Redes", dirigido por Jeff Orlowski. 

Em foco, o perturbador método pelo qual somos induzidos a comportamentos, desde a camada e nosso pensamento mais acessível, no estado de plena consciência, até o nível subconsciente desde onde engendramos as origens de nossas ações.     

O debate terá a presença do cineasta, Caio Resende, e do cientista da computação, Marlovich Vaz Dantas, e será novamente mediado pela realizadora do Cine Clube Devir Cinema e professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), Nedelka Palma.

O Cine Clube Devir Cinema é um projeto de extensão da UFOB. Participantes na Mostra Virtual ganham certificado válido para currículos acadêmicos e no geral. Para garantir o certificado é necessário se inscrever na Mostra, porém a participação é aberta a todo público, mesmo sem inscrição.

Confira o nosso calendário de debates e o passo passo para se inscrever e participar do debate. Participe conosco dessa transformação do pensamento por meio da 7ª arte:   

CALENDÁRIO DA MOSTRA VIRTUAL "DEVIR NEGRO"

06/11/2020: "Faça a Coisa Certa" (1989). Direção: Spike Lee

13/11/2020: "Café com Canela" (2017). Direção: Glenda Nicácio & Ary Rosa

20/11/2020: "Fronteiras" (2017). Direção: Apolline Traoré

27/11/2020: "A Última Abolição" (2017). Direção: Alice Gomes

04/12/2020: "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008). Direção: Fernando Meirelles

11/12/2020: "O Dilema das Redes" (2020). Direção: Jeff Orlowski

18/12/2020: Conversa com o público para sugestões, críticas, continuidades.


PASSO A PASSO PARA INSCRIÇÕES, DEGUSTAÇÃO DO FILME E PARTICIPAÇÃO NO DEBATE:

1º PASSO - É necessário realizar, antes de tudo, a sua inscrição na Mostra Virtual para garantir seu certificado [Clicando aqui!].  

2º PASSO - Baixar o filme e assisti-lo previamente! O link onde pode ser encontrado já está disponível! [Clique aqui para baixar o filme!] É necessário baixar também a legenda [Clicando aqui!]. Para ativá-la é necessário salvar os arquivos do filme e da legenda na mesma pasta, lado a lado. Assim, ao dar o play no programa usado para rodar o filme, a tradução escrita entrará automaticamente. 

3º PASSO - Para participar do debate sobre o filme, que é o principal momento de todo Cine Clube, você precisa acessar a sala do Google Meet que reservamos para esse fim. É necessário ter o aplicativo baixado. Se você ainda não o possui, também disponibilizamos o link [Clique aqui para baixar o aplicativo!]. Baixado o aplicativo, basta acessar a sala de reunião no dia e horário especificado - sexta feira 20 às 20h (Brasília) - e participar! [Clique aqui para acessar a sala de reunião!]

4º PASSO - Divirta-se transformando e enriquecendo seu pensamento através do cinema conosco! 

Maiores esclarecimentos e orientações pelo e-mail devircinema@gmail.com 

sábado, 5 de dezembro de 2020

O ENSAIO DE UMA CEGUEIRA DE MÚLTIPLOS SENTIDOS

Nesta última sexta (4) o Cine Clube Devir Cinema promoveu o debate em torno de questões tendo como gatilho o filme "Ensaio Sobre a Cegueira", dirigido por Fernando Meirelles. A história é uma adaptação para as telas do grande clássico da literatura do escritor português José Saramago, primeiro e único prêmio Nobel da literatura escrita em língua portuguesa. O filme de 2008 não é para o cinema o que o livro é para a literatura - uma obra prima sensacional -, mas o trabalho de múltiplos sentidos atribuíveis ao conceito da "cegueira", trabalhado tanto no papel quanto no audiovisual, rende discussões interessantes.

A presente crítica ao filme é uma visão do jornalista a serviço do Cine Clube Devir, Paolo Gutiérrez, e não se pretende verdade absoluta sobre a obra, tanto do ponto de vista da construção técnica do filme como das leituras possíveis a partir da análise das mensagens transmitidas por ele. No aspecto técnico, usamos aqui alguns conceitos difundidos pela Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), através de seu sócio-fundador, Bruno Albuquerque.

Se você está lendo esta postagem e ainda não assistiu ao filme, é recomendável que você o veja primeiro [Clique aqui para baixar o filme e aqui para baixar sua legenda em português, salvando os dois arquivos lado a lado na mesma pasta!] antes de continuar esta leitura, porque o presente comentário te dará vários spoilers que estragarão a sua experiência de vê-lo pela primeira vez. 

Depois de assistir, fica nítido como a cegueira é uma pandemia que nos atinge em vários níveis a nós humanos.

Roteiro adaptado e provável arco plano de narrativa

O livro de José Saramago "Ensaio Sobre a Cegueira" é uma obra cuja história narrada é crua, pesada e sofrida. O próprio autor a definiu assim, mais ou menos com essas palavras. Mas possui trunfos narrativos fantásticos. O filme não dispõe do espaço físico para construção de significado proporcionado pela vastidão de 300 e poucas páginas. Possui apenas 2 horas para um roteiro que resumisse todo o universo da obra literária. Também não possui o trunfo da ausência da imagem direta que tem a escrita impressa.

A imagem do filme fixa o aspecto visual que o contar da história estimula ao cérebro, tirando de cena a nossa imaginação sobre o que está sendo contado. A riqueza de acontecimentos em um romance se esparrama pelas centenas de páginas, o que as poucas horas de um filme não permitem. Ainda assim, há recursos usados por Saramago que foram adaptados por Meirelles e que deixam o filme fidedigno com relação ao espírito do romance. Um deles é a ausência de nomes para os personagens.

No livro, toda vez que algum dos principais aparece na história pela primeira vez, o autor descreve a personagem com um substantivo comum e logo algum adjetivo ou locução adjetivante - por exemplo: o "homem da venda preta" ou a "mulher de óculos escuros". Posteriormente esta caracterização passa a ser a denominação da personagem, acontecendo uma função de substantivos próprios atribuídos a essas junções de substantivos comuns e adjetivos.

No filme, também não há nomes próprios e o roteiro precisou adaptar isso, em alguns pontos de maneira problemática. No livro dá-se a entender que personagens conhecem uns os nomes dos outros quando passam a ter uma relação mais íntima. Esse momento só não aparece na narrativa. O papel escrito permite isso sem maiores problemas de lógica. No livro tem até uma personagem que o grupo principal conhece de passagem, ela oferece ajuda e eles lhe perguntam o nome. É uma senhora que já era cega antes da pandemia que assola a humanidade (pretensamente no mundo todo) e que e recusa a dizer o próprio nome e dá uma desculpa que parece plausível no livro.

Mas na obra audiovisual isso ficou um pouco vão em alguns momentos. Quando o primeiro atingido pela cegueira (Yusuke Iseya) chega em casa ele precisa chamar pela mulher (Yoshino Kimura). Ele o faz em outro idioma - japonês -, mas parece usar um nome genérico ("mulher", ao que parece). O mais natural era que usasse o nome da esposa. Também quando uma das principais se consulta no médico e os dois se reencontram na quarentena, seria natural que o médico para confirmar a identidade de sua paciente - e verificar se está se lembrando realmente da pessoa - invocasse o seu nome. E não é o que acontece.

Apesar desta equação insolúvel em vários momentos para a adaptação do filme, o trunfo de não usar nomes para as personagens ajuda na construção da mensagem transmitida audiovisualmente. A história possui dois momentos cruciais. Temos o início e a efetivação de uma cegueira como uma doença possivelmente contagiosa. Assim os primeiros "doentes" identificados são submetidos a uma quarentena em um hospital. As principais personagens já foram desenvolvidas até o momento que a situação de quarentena se estende por dias e semanas.

Os cegos precisam de uma nova estratégia de sobrevivência, visto que seu mundo particular como o conheciam deixa de existir. Os estreitamento das relações entre as personagens principais as retira de seus universos particulares e as coloca em uma situação onde só a solidariedade mútua poderá salva-las de uma morte lenta e sofrida. Elas caminham para superar sua individualidade e formar um grupo em que todos têm direitos iguais, desprovidos dos pré-julgamentos usuais proporcionados pelas imagens socialmente construídas.

Por exemplo, a mulher dos óculos escuros (Alice Braga) se apaixona pelo homem de venda preta (Danny Glover). Ela é uma mulher jovem, bonita e que explora a própria beleza para fazer programas sexuais e ganhar dinheiro com eles. Se os dois se conhecessem podendo um ver a aparência do outro, a tendência seria que o visual do homem da venda preta, por ser um senhor de idade e aparentando pobreza, não lhe fosse atrativo. Os personagens superam seus velhos valores, criam uma unidade social de laço forte, baseada em sentimentos humanos e verdadeiros.

Eles conseguem superar todos os obstáculos, conseguem se libertar da quarentena após a cegueira atingir o "mundo todo" e rumam para a casa de dois deles, os mais principais personagens entre os principais. O médico (Mark Ruffalo) e sua esposa (Juliane Moore) possuem uma casa grande, estruturada, com alimentos ainda estocados e a oferecem a todo o grupo. Ao chegar lá, seu laço de união atinge seu ponto mais forte e a amizade entre todos gera uma família, unida e humanizada.

O roteiro adaptou o livro distinguindo de maneira bem cristã estes dois momentos. A quarentena é o inferno, aonde a individualidade ainda reina nas relações. Ao ganharem a liberdade da quarentena, a rua é um purgatório aonde o laço do grupo é testado no novo mundo da cegueira, sendo este um momento intermediário. E a casa do médico, aonde o individualismo é superado por completo é o céu, o paraíso. Todo o mal está purgado das cenas que compõem esse momento da casa do médico e da esposa. As personagens todas estão livres de todo o "mal" e comemoram com sorrisos de plena felicidade chegarem a esse "Éden" de sua relação social.

A ausência de nomes para as personagens é um recurso para acentuar essa necessidade de coletividade baseada em afeto humano transmitida no filme. O trunfo do livro é transmutado para as telas, embora o roteiro tenha encontrado os empecilhos que citamos para isso. A personagem principal no filme é sem dúvida a mulher do médico. Ela foi a única que não foi atingida pela cegueira misteriosa e irá guiar todos os demais pelo assustador mundo em que a narrativa da história os enfiou. 

Ela é a mais solidária do grupo e foi a responsável pela união de todos, do início ao fim. O que nos faz classificar o arco narrativo de sua personagem como um Arco Plano, segundo ideário de construção de personagens em histórias fictícias estabelecido por K.M. Weiland e difundido pelo SBC. O Arco Plano é quando a personagem central da história é conhecedora de um valor positivo e tenta transformar todos em sua volta na direção desse valor. Ela conhece uma verdade que o seu mundo não conhece e tenta transformar o mundo com essa verdade.

A mulher do médico é de fato a personagem mais solidária de todas. Ela é a primeira a renunciar a si própria para ajudar aos demais e trabalha o tempo todo para convence-los a aderir a essa mentalidade solidária. Ela é contagiante e sua bondade vai incendiando os demais membros de seu grupo, guiando-os, literalmente, para a liberdade em relação aos seus mundos mesquinhos e separados para um valor de igualdade e respeito mútuo.

Como é típico desse arco, a personagem duvida em vários momentos se a sua "verdade" é mesmo o melhor caminho. Ela sofre para lutar por essa verdade. Sofre para tentar convencer aos demais. Mas persevera e segue em frente, superando todos os obstáculos do caminho. E outra característica pode confirmar esse arco narrativo plano. Ela é a única que consegue enxergar. Transmite esse poder aos demais. Metaforicamente, podemos dizer que ela vê a "verdade" da solidariedade humana e trabalhará o filme todo para transmitir esse valor aos demais.

No fim, quando o clímax do filme acontece e estamos no epílogo, o primeiro a ser abatido com a misteriosa cegueira recupera a visão. O filme termina com todos celebrando esse momento e com a certeza de que todos se recuperarão. No livro todos se recuperam, o filme deixa sugestionado, mas unido os dois, sabemos que esse é o destino da cegueira misteriosa. E quando a mulher do médico achou que seria a vez dela ficar cega, isso não acontece.

Porque ela não está em nenhum momento sob a cegueira da individualidade humana mesquinha. Então não faria sentido que ela ficasse cega na história, confirmando relativamente o ponto de vista desta crítica. Por falar em clímax, o filme obedece ao roteiro básico do cinema padronizado por uma estética Hollywoodiana. O primeiro ato, aonde se desenvolvem as personagens significantes da trama vai até meia hora do filme. 

O segundo ato vai desde a chegada dos bandidos no que chamamos aqui de "inferno da individualidade", até o fim do "purgatório das ruas" - que é onde está geograficamente situada a "aventura de fato", que no filme é o novo grupo enfrentando o novo e perigoso mundo da cegueira misteriosa.

E o terceiro ato, com os já citados clímax e epílogo, é a chegada ao "paraíso da solidariedade humana".  

Mise en Scene, presente!

Para a SBC, nada num filme é por acaso ou só porque seus autores acharam bonitinho. Na linguagem audiovisual há sempre elementos que comunicam mensagens se comunicando com o nosso cérebro em níveis tácitos, e na maioria das vezes nem nos damos conta dessas dinâmicas como foram trabalhadas em cena. Quem tem acompanhado as críticas aqui no blog do Devir Cinema, sabe que guardamos lugar especial para a Mise en Scéne - tudo o que vemos em cena - dos filmes em análise. 

Para Bruno Albuquerque, o som não faz parte da Mise en Scéne. Esta seria o conjunto de tudo o que vemos em cena, na imagem. A crítica aqui é sempre feita em conta com este preceito. No entanto, um filme sobre a cegueira (ironicamente) tem aspectos visuais que se sobrepõem ao desempenho do som, tornando este um acompanhamento. Não menos importante, claro, mas um complemento. Por isso, esta análise de Mise en Scéne já vai tocar em aspectos sonoros, dispensando uma seção aqui no texto só para ele.

Vamos falar do aspecto imagético principal deste filme, trabalhado pela Direção de Fotografia. Como sabemos, este setor de todo filme é responsável por tudo o que vemos no quadro. Para a SBC, a posição das câmeras e os ângulos de enquadramentos fazem parte dessa direção. Mais uma vez, vamos com essa premissa. E a parte que mais importa para este filme é a iluminação e a psicologia das cores, trabalhadas diretamente pela Direção de Fotografia. 

Na história, uma misteriosa cegueira se abate sobre todas as pessoas e dá a entender, da maneira como se propaga, ser oriunda de uma desconhecida doença contagiosa. A característica principal dessa cegueira dá o tom principal dos significados de cores e do trabalho de iluminação. O filme alterna momentos de escuridão com uma luz branca estourada e que por vezes toma conta dos planos por completo. Aí é evidente a intenção. O filme faz com que o público experimente em vários planos a mesma sensação de cegueira que se abate sobre as personagens.

Mais do que isso, no início dá todos os indicadores do fato de que a cegueira vai tomar conta do universo do filme. A primeira cena é o chamado paciente zero ficando cego no exato momento em que estava com seu carro parado no sinal vermelho e, quando muda para verde, ele não consegue dar a partida - exatamente porque ficou cego. Detalhe das cores aqui começa no sinal. Há um plano detalhe (enquadramento bem próximo do objeto filmado) mostrando as luzes do sinal se alternando de verde para vermelha, pontuando o ritmo urbano do trânsito.

Não se mostra a luz amarela do sinal em nenhum momento, nem quando o plano abre e mostra o aparelho por completo na tela. Seria a Mise en Scéne comunicando que iremos para dois extremos opostos no filme, sendo o verde a representação da normalidade do fluxo das coisas e o vermelho a indicação de que teremos uma situação violenta e perigosa logo a seguir? Possivelmente sim. Mas o que chama a atenção nesta primeira cena é que a iluminação já dá o tom do fato principal do filme - a cegueira branca. A iluminação dá uma matiz toda esbranquiçada para as imagens. 

O branco chega a estar estourado a um ponto que o carro do paciente zero, o japonês, é uma cor de prata clara, mas parece que o carro é todo branco. Todas as outras cores, nestes enquadramentos perdem força, mostrando que a cegueira faz a pessoa ter a impressão de que está mergulhada em um leite homogêneo. Os momentos escuros dando um contraste com esses mais claros, podem indicar espaços que abrigam relações sociais deterioradas. Percebe-se essa escuridão eventual na casa do médico logo na primeira vez que esta aparece e na casa do Japonês, o paciente zero.

Ambos tem problemas de comunicação com suas esposas, e, embora estas se esforcem visivelmente pela relação, sendo gentis com seus maridos, percebe-se as mulheres incomodadas nos casamentos. Especialmente a personagem principal, a mulher do médico. A japonesa não sorri e está sempre empenhada em obedecer à tendência fortemente patriarcalista típica da cultura japonesa - ser uma esposa dedicada, não importa o quanto o marido a trate mal. A mulher do médico ri, mas é um riso forçado, de quem está fazendo de tudo para fingir que as coisas andam bem.

Aqui já temos que falar na Direção de Arte, a sessão do filme responsável por todas as "coisas" que aparecem no quadro, os objetos - incluindo cenários, figurinos e maquiagens das personagens. Os objetos também carregam a psicologia predominante da cor branca. Desde o jaleco do médico, quando atende o paciente zero, até às cores das roupas dos manequins da loja por onde passa à pé a caminho de casa. Os manequins estão vestidos de branco em sua maioria (esse plano ai não foi gratuito, tenha certeza). Na casa do paciente zero predomina o branco em todos os objetos, nas paredes, na mobília (especialmente os armários da cozinha).

Quando a esposa chega em casa, o japonês está deitado no sofá de olhos fechados e ela percebe que ele se machucou com um vidro quebrado. Quando ela se abaixa para falar com ele ela usa uma espécie de cachecol fino todo branco. E ai a cena onde a iluminação foi trabalhada de um jeito curioso. Geralmente em cenas internas a iluminação finge ser oriunda de alguma lâmpada do ambiente ou da entrada da luz natural no recinto. Quando a mulher do paciente zero descobre que ele está cego, corre para um cômodo - a cozinha - onde procura pelo telefone de um especialista - o nosso médico, marido da personagem principal.

Ela fica numa posição de perfil em relação à câmera, inclinada para a esquerda do plano, procurando o número de telefone em uma gaveta. Atrás, tem uma janela pela qual entra uma luz branca bem estourada, parecendo até a cegueira envolvendo a personagem - antecipação de que ela ficaria cega também, talvez. Poucos segundos depois essa luz abaixa totalmente ao ponto que a escuridão avançada do dia ganha o destaque e ela chega a desligar a luz e ascender alternadamente para testar se o marido consegue distinguir alguma coisa. Curioso é que o plano fica escuro exatamente quando o marido entra na cozinha, talvez comprovando a nossa teoria que a escuridão representa a frieza dos relacionamentos no filme.

E isso fica evidente na casa do médico também. Após a cena dos manequins, corta para um plano onde ele está sentado esperando a esposa servir uma sobremesa. Ele tenta falar sobre o caso curioso do paciente zero, mas o barulho da batedeira que a esposa está usando o impede de continuar a falar. O médico faz uma cara de extremo incômodo enquanto o barulho persiste. O som aqui foi usado para expressar a falta de comunicação de um casal em total descompasso de interesses. A mulher do médico está batendo alguma coisa.

É a clara de um ovo até que se torna totalmente esbranquiçada, num chantili com um aspecto totalmente leitoso. Aqui o branco da cegueira antecipado pela Mise en Scéne de novo, porque quando ela senta na mesa ao lado do marido levando a tigela, a câmera enfoca bem o chantili no plano seguinte. Não foi porque Fernando Meirelles adora chantili, na opinião (humilde) desta crítica. Ela pede desculpas com um sorriso bem aberto, porém forçado. Ela não quer ouvir sobre o trabalho dele, e provavelmente esse é um dos motivos da relação esfriada. 

Esse descompasso entre os dois se confirma logo em seguida. A sobremesa o marido nem sabe qual é o nome do doce, e, quando o experimenta, faz uma cara de quem está comendo forçado só para agradar. Aqui entra outro objeto que é bem significativo no filme. A mulher oferece ao médico uma taça de vinho, e ela já estava tomando uma. Ele recusa e pergunta se ela vai continuar bebendo, com um tom de reprovação. A próxima cena em que haverá taças com bebida alcóolica será exatamente no clímax do filme, quando as personagens atingem aquele sentimento de amizade e coletividade máximos.

A taça com bebida alcóolica representa, para esta crítica, a união social entre pessoas que se gostam muito. É a comemoração de um laço forte. No primeiro ato, a mulher oferece e o marido recusa. Sinal de que ela se esforça para fortalecer o laço humano do casamentos e ele está fechado para esse laço. Ela se esforça para a relação ganhar essa vida e ele tem cara de reprovação para as coisas que ela faz nesse esforço. Ela chega ainda na sequência destas cenas a se olhar no espelho com a cara de cansada de tanto lutar pela relação e o médico permanecer alheio a esses esforços, focado em seu trabalho.

Pelo visto, o médico olha para a mulher apenas como alguém para ouvir sobre seus pacientes e para fazer sexo quando ele tem vontade. Fica nítido como ela se sente assim, apenas um objeto sexual, quando, na quarentena, ele tenta acaricia-la lascivamente e ela usa uma desculpa esfarrapada para fugir dele. No filme ela está tão desgostosa com ele que não quer premiar sua frieza com ela com o sexo apenas orgânico. E tanto assim que o médico, no limite de sua carência sexual, acaba transando com a mulher dos óculos escuros, sua paciente outrora, bem no refeitório da quarentena.

A mulher do médico, que instantes antes brigara com ele e o deixara sozinho (mais um momento onde ele chamaria pelo nome dela ao ser abandonado e não o faz, fazendo com que os acontecimentos percam coerência lógica), percebeu que a mulher dos óculos escuros transou com seu marido. Ao invés de se zangar e reprimi-la ela ficou grata com ela, e lhe confidenciou o segredo de que ela podia enxergar. Ao invés de brigar com a mulher que acabou de ter um caso com seu marido, ela estreitou o laço de amizade com ela. Por que isso? Por que ela a livrou desse sexo puramente carnal. 

Porque deu à relação do médico com a sua mulher exatamente o tempo de respiro que a esposa precisava sem se entregar ao sexo por necessidade fisiológica e que ela não queria ter com o marido. Aliás, a atriz Juliane Moore não poderia ter sido melhor escolhida para esta Mise en Scéne com franco primado do branco em oposição à todas as outras cores que aparecem na tela. Sua pela de tonalidade branquela casam perfeitamente com a luminosidade de branco estourado do filme. 

Ela chega a cumprir, assim, um papel humano dentro das Direções de Fotografia e de Arte no que diz respeito ao impacto da psicologia das cores do universo interno do filme.

Armas de fogo representando a tirania e cenários marcantes

Ora conhecendo as premissas da Direção de Fotografia e de Arte, aonde até a escolha da atriz principal favoreceu a psicologia predominante do branco leitoso, é necessário falar de dois cenários que parecem até personagens da história - tanto no livro quanto no filme. O primeiro aparece no fim do primeiro ato, terminando de desenvolver todas as personagens. É o hospital que serve como quarentena para os "doentes cegos". Nele também começa o segundo ato, quando chegam bandidos armados e tomam o controle de todos na quarentena, pelo uso da força e do medo.

O outro cenário são as ruas após a libertação das personagens da quarentena porque todos foram afligidos pela cegueira. Essa sequência de cenas é quase toda gravada em externas, tendo vários takes capturados na cidade de São Paulo. Estes dois cenários marcantes são, para esta crítica, o momento do "inferno" e da "transição" para o "paraíso". Vamos ao inferno primeiro. O interior da quarentena tem muitos planos fechados, com ar claustrofóbico. Há uma TV instalada pelo governo aonde aparece um vídeo com um funcionário público explicando as regras do confinamento.

Muitos planos com escuridão predominante nesta fase da história, e, coincidentemente, muitas relações complicadas, especialmente na chegada dos bandidos e a tomada do "poder" por estes. As cores da quarentena são frias (as próximas ao azul e verde), corroboradas pela matiz esbranquiçada predominante em quase todo o filme. O segundo ato, aonde começa a "aventura" do filme em si tem início aqui. O grupo da mulher do médico, do próprio médico, junto com a mulher de óculos escuros e o homem da venda preta, mais o paciente zero e sua mulher, fechado com a presença de um garoto (Mitchell Nye) que se separou da mãe (e que tinha sido paciente do médico no início), será definido e passarão pela aventura de chegar ao paraíso da amizade plena.

Sobreviver à dura quarentena foi o primeiro desafio. Havia mais um candidato ao grupo, mas que não conseguiu escapar à morte. Morte conceitual inclusive, já que suas atitudes mostram que jamais conseguiria aprender a lição de solidariedade que o grupo principal precisou aprender para conseguir êxito na trama. No início do filme, um ladrão (Don Mckellar) ajuda o paciente zero a chegar em casa, mas lhe rouba o carro na sequência. Ele morre em consequência de um grave ferimento na perna e acaba abatido pelos soldados que vigiam os cegos para que não fujam do confinamento.

Direção de Arte com alta representatividade aqui. O hospital abandonado que o governo usa para essa quarentena não tem nenhuma estrutura para abrigar com decência os "doentes". Não se criam mecanismos para orientar os cegos no confinamento, para garantir higiene, principalmente. Pouco a pouco, o lugar vira uma bagunça generalizada, com roupas e papéis higiênicos sujos espalhados por todo lado. Fezes e urina tomam conta do lugar. A Direção de Arte expressou o "inferno" aqui com maestria - nem seria tão difícil conseguir.

Mas esse inferno é o do abandono do governo para com os "infectados". Sabemos que humanos foram abatidos por uma misteriosa cegueira e o que fizemos a respeito? Os largamos em um lugar isolado, os discriminamos, e os deixamos sofrer à própria sorte. Periodicamente, o governo mandava caixas com comida, que não era suficiente para todos. Os soldados que cuidavam da vigília eram grosseiros e tratavam os cegos como cachorros sarnentos. Quando o médico foi pedir remédios para cuidar da perna do ladrão, os soldados recusaram em atender e ainda ameaçaram atirar no médico e em sua mulher.

É a primeira aparição das armas como forma de tirania no filme. A Direção de Arte usada para expressar esse significado da imposição humana pela força numa situação que nos reduziu a um estado de barbárie, pela ignorância e pelo pânico. O governo, no filme, poderia bem providenciar mecanismos para esses atendimentos. Se a cegueira era contagiosa, bastava levar guias usando roupas isolantes. Poderiam orientar os cegos e impedir as condições sub-humanas em que permaneceram no confinamento. Não. Mais barato foi tratá-los como animais e usar da força das armas de fogo para isolá-los, ao mais clássico estilo de tratamento que se dava aos leprosos antigamente.

Outro aspecto do cenário é a presença maciça de grades por todo o lugar, aumentando essa sensação de 'pária' e de 'claustrofobia' da quarentena. Em alguns planos, a câmera filma os personagens de maneira a que o gradeado se sobrepõe aos personagens - propositalmente para expressar esse significado do lugar. Um lugar que deveria ser para acolher as pessoas em dificuldades, é na verdade um "presídio" aonde se prendem pessoas cujo crime foi ficarem cegas e serem percebidas como ameaça à sociedade.

Nada mais sugestivo do que a chegada de bandidos de verdade. Eles ocupam a ala 3 do confinamento  e logo estabelecem um reinado de terror. O líder deles, que e autodenominou de o "rei da ala 3", estava armado e usou essa arma para submeter todos as outras duas alas. Determinou que as caixas de comida eram todas da ala 3 e que as demais alas deveriam comprar os alimentos com eles. Quando os objetos de valor acabaram, os bandidos solicitaram que as mulheres das outras duas alas deveriam fazer sexo com eles em troca de comida para suas respectivas alas.

A arma do rei da ala 3 representa, assim como as dos soldados da vigília, a tirania, só que, diferente dos fuzis dos soldados, uma representação da força opressora do estado, estas são a força opressora dos bandidos. Aonde o estado não chega o bandido com seu armamento de fogo é quem dita as regras. Esse bandido toma para si as riquezas que deveriam ser de todos, monopoliza a comida e toma à força as mulheres. A Direção de Arte usada para uma representação que nos é bem familiar à situação das favelas brasileiras, com traficantes e narco-milicianos dando as cartas nas comunidades, com apoio do estado e da própria justiça.

E a Direção de Fotografia reforçou o poder da arma ao mostrar a mulher do médico e o médico em uma plongé (ângulo com a câmera de cima para baixo), manifestando a inferioridade de todos perante a violência brutal proporcionada pela presença da arma de fogo, conferindo ao seu dono e associados o poder absoluto.

As duas alas do confinamento se submetem por medo. Mas a mulher do médico, após ser estuprada pelo rei da ala 3 e de ver uma das mulheres de sua ala ser morta por espancamento porque não conseguiu agradar sexualmente um dos bandidos, se revoltou e resolveu matar o líder dos criminosos. Outra representação aqui é a força das mulheres, que, violentadas, dizem não à opressão machista e tomam o controle dos rumos de suas vidas exigindo seus direitos. O estupro coletivo e o fim do reinado da ala 3 do confinamento, em um incêndio acidental, é o final da fase "infernal" do filme, com todas as características dantescas de sua última cena - chamas, desespero, morte e destruição para todos os lados. 

Com a destruição do espaço interno do confinamento, o todos descobrem que não havia mais guardas cuidando os portões e saem para as ruas. O cenário caótico continua, mas as imagens externas são de uma luminosidade maior, com cores mais quentes, o que dá a impressão de que o grupo progrediu ao sair do hospital, ganhando liberdade e superando o ambiente claustrofóbico. A aventura prossegue pelas ruas onde dois momentos merecem destaque. Primeiro, quando a o médico e sua mulher acham um supermercado, ela recolhe vários alimentos, mas é atacada por gente esfomeada que ronda todos os lugares.

Foi o momento de apocalipse zumbi do filme, puxando brevemente a narrativa de terror das histórias deste tipo, contadas no cinema e em seriados famosos. O segundo momento é o que dá o caráter sacro ao filme - e que inspirou esta crítica a pensar os momentos do filme como uma progressão do céu até o inferno. Ao fugirem dos "zumbis", a mulher do médico entra em uma igreja com vários refugiados, visando se proteger da chuva. Lá ela viu várias imagens de santos com os olhos vendados. As vendas feitas em pano branco.

Todos os santos da igreja vendados desta forma. Essa passagem existe no livro também. Honestamente, o que pode significar além de um mistério insolúvel na história, não dá para saber. Saramago (e por consequência, Meirelles) quis dizer que a cegueira era uma espécie de provação divina para a humanidade? Se tratava de um evento metafísico? É mais uma metáfora da cegueira dizendo que os humanos precisam superar sua cegueira para que os bons espíritos voltem a enxergá-los de forma válida. Não dá para saber. Só mais um mistério para deixar no ar questões que dão ar charmoso para a trama? A religião nos deixa cegos perante questões humanas?

Sem resposta para essa questão e talvez fosse essa a intenção de Saramago - e de Meireles.

Conclusões

O filme "Ensaio Sobre a Cegueira" precisa ser visto desde uma ótica separada do livro, embora isso seja impossível com plenitude. É preciso ser avaliada como uma obra cinematográfica e não como uma adaptação de livro. O livro é divinamente perfeito em suas críticas, nas sacadas de seu autor, nos raciocínios que nos transportam para uma dimensão de questionamento sobre o valor da vida.

O filme é de um diretor brasileiro que se aproximou de Hollywood e para isso precisou seguir toda uma cartilha do cinema industrial na elaboração do roteiro e nas gravações. O grande pecado do som é que uma obra lusitana que foi merecedora do primeiro e único Nobel de literatura para a língua portuguesa é um filme em inglês.

Merecia um bom português essa versão na sétima arte. Quem sabe no futuro isso aconteça, mas é difícil. Mas, quando os planos embranquecem, o som é a única certeza que o público tem de que o filme prossegue, mesmo sem imagem. Assim a sensação de cegueira nos é transmitida em todo sua dimensão de de sofrimento e angústia. A trilha sonora e musical agem bem nesses momentos, aumentando a sensação de que "enxergamos" o mundo igual às personagens. Essa sensação o cinema transmite com mais eficiência do que o livro, sem dúvida.

E o que significa esse branco na cegueira? O que representa a cegueira? Não enxergamos as pessoas enquanto seres humanos. Não enxergamos o outro para além de nossas perspectivas individuais e mesquinhas. A vida humana não tem valor para nós, de verdade. Somos um emaranhado de relações de poder onde estamos nos sobrepondo uns sobre os outros. O Estado não nos enxerga, as deidades metafísicas em que acreditamos com tanta fé não nos enxergam. Nós não nos enxergamos.

Somente a verdadeira compaixão e a solidariedade genuínas podem nos curar de nossa cegueira na qual não passamos de agentes da nossa própria barbárie. Devemos passar a perceber com nossos olhos a verdadeira podridão que promovemos em nossas relações, entender que precisamos evoluir dela e chegar, por relações justas, ao patamar de "gente" onde por fim conseguiremos o verdadeiro estado de civilização de nosso mundo socialmente construído.

Essa é uma leitura possível! Qual é a sua?

Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.   

 

                        

UFOB ABRE VAGAS PARA BOLSA REMUNERADA E VOLUNTÁRIOS DO PIBIEX

Santa Maria da Vitória (Ba) - A Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) anunciou nesta quarta feira (24) a abertura de 41 vagas no Pr...