Nesta última sexta (4) o Cine Clube Devir Cinema promoveu o debate em torno de questões tendo como gatilho o filme "Ensaio Sobre a Cegueira", dirigido por Fernando Meirelles. A história é uma adaptação para as telas do grande clássico da literatura do escritor português
José Saramago, primeiro e único prêmio Nobel da literatura escrita em língua portuguesa. O filme de 2008 não é para o cinema o que o livro é para a literatura - uma obra prima sensacional -, mas o trabalho de múltiplos sentidos atribuíveis ao conceito da "cegueira", trabalhado tanto no papel quanto no audiovisual, rende discussões interessantes.
A presente crítica ao filme é uma visão do jornalista a serviço do Cine Clube Devir, Paolo Gutiérrez, e não se pretende verdade absoluta sobre a obra, tanto do ponto de vista da construção técnica do filme como das leituras possíveis a partir da análise das mensagens transmitidas por ele. No aspecto técnico, usamos aqui alguns conceitos difundidos pela Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), através de seu sócio-fundador, Bruno Albuquerque.
Se você está lendo esta postagem e ainda não assistiu ao filme, é recomendável que você o veja primeiro [Clique aqui para baixar o filme e aqui para baixar sua legenda em português, salvando os dois arquivos lado a lado na mesma pasta!] antes de continuar esta leitura, porque o presente comentário te dará vários spoilers que estragarão a sua experiência de vê-lo pela primeira vez.
Depois de assistir, fica nítido como a cegueira é uma pandemia que nos atinge em vários níveis a nós humanos.
Roteiro adaptado e provável arco plano de narrativa
O livro de José Saramago "Ensaio Sobre a Cegueira" é uma obra cuja história narrada é crua, pesada e sofrida. O próprio autor a definiu assim, mais ou menos com essas palavras. Mas possui trunfos narrativos fantásticos. O filme não dispõe do espaço físico para construção de significado proporcionado pela vastidão de 300 e poucas páginas. Possui apenas 2 horas para um roteiro que resumisse todo o universo da obra literária. Também não possui o trunfo da ausência da imagem direta que tem a escrita impressa.
A imagem do filme fixa o aspecto visual que o contar da história estimula ao cérebro, tirando de cena a nossa imaginação sobre o que está sendo contado. A riqueza de acontecimentos em um romance se esparrama pelas centenas de páginas, o que as poucas horas de um filme não permitem. Ainda assim, há recursos usados por Saramago que foram adaptados por Meirelles e que deixam o filme fidedigno com relação ao espírito do romance. Um deles é a ausência de nomes para os personagens.
No livro, toda vez que algum dos principais aparece na história pela primeira vez, o autor descreve a personagem com um substantivo comum e logo algum adjetivo ou locução adjetivante - por exemplo: o "homem da venda preta" ou a "mulher de óculos escuros". Posteriormente esta caracterização passa a ser a denominação da personagem, acontecendo uma função de substantivos próprios atribuídos a essas junções de substantivos comuns e adjetivos.
No filme, também não há nomes próprios e o roteiro precisou adaptar isso, em alguns pontos de maneira problemática. No livro dá-se a entender que personagens conhecem uns os nomes dos outros quando passam a ter uma relação mais íntima. Esse momento só não aparece na narrativa. O papel escrito permite isso sem maiores problemas de lógica. No livro tem até uma personagem que o grupo principal conhece de passagem, ela oferece ajuda e eles lhe perguntam o nome. É uma senhora que já era cega antes da pandemia que assola a humanidade (pretensamente no mundo todo) e que e recusa a dizer o próprio nome e dá uma desculpa que parece plausível no livro.
Mas na obra audiovisual isso ficou um pouco vão em alguns momentos. Quando o primeiro atingido pela cegueira (Yusuke Iseya) chega em casa ele precisa chamar pela mulher (Yoshino Kimura). Ele o faz em outro idioma - japonês -, mas parece usar um nome genérico ("mulher", ao que parece). O mais natural era que usasse o nome da esposa. Também quando uma das principais se consulta no médico e os dois se reencontram na quarentena, seria natural que o médico para confirmar a identidade de sua paciente - e verificar se está se lembrando realmente da pessoa - invocasse o seu nome. E não é o que acontece.
Apesar desta equação insolúvel em vários momentos para a adaptação do filme, o trunfo de não usar nomes para as personagens ajuda na construção da mensagem transmitida audiovisualmente. A história possui dois momentos cruciais. Temos o início e a efetivação de uma cegueira como uma doença possivelmente contagiosa. Assim os primeiros "doentes" identificados são submetidos a uma quarentena em um hospital. As principais personagens já foram desenvolvidas até o momento que a situação de quarentena se estende por dias e semanas.
Os cegos precisam de uma nova estratégia de sobrevivência, visto que seu mundo particular como o conheciam deixa de existir. Os estreitamento das relações entre as personagens principais as retira de seus universos particulares e as coloca em uma situação onde só a solidariedade mútua poderá salva-las de uma morte lenta e sofrida. Elas caminham para superar sua individualidade e formar um grupo em que todos têm direitos iguais, desprovidos dos pré-julgamentos usuais proporcionados pelas imagens socialmente construídas.
Por exemplo, a mulher dos óculos escuros (Alice Braga) se apaixona pelo homem de venda preta (Danny Glover). Ela é uma mulher jovem, bonita e que explora a própria beleza para fazer programas sexuais e ganhar dinheiro com eles. Se os dois se conhecessem podendo um ver a aparência do outro, a tendência seria que o visual do homem da venda preta, por ser um senhor de idade e aparentando pobreza, não lhe fosse atrativo. Os personagens superam seus velhos valores, criam uma unidade social de laço forte, baseada em sentimentos humanos e verdadeiros.
Eles conseguem superar todos os obstáculos, conseguem se libertar da quarentena após a cegueira atingir o "mundo todo" e rumam para a casa de dois deles, os mais principais personagens entre os principais. O médico (Mark Ruffalo) e sua esposa (Juliane Moore) possuem uma casa grande, estruturada, com alimentos ainda estocados e a oferecem a todo o grupo. Ao chegar lá, seu laço de união atinge seu ponto mais forte e a amizade entre todos gera uma família, unida e humanizada.

O roteiro adaptou o livro distinguindo de maneira bem cristã estes dois momentos. A quarentena é o inferno, aonde a individualidade ainda reina nas relações. Ao ganharem a liberdade da quarentena, a rua é um purgatório aonde o laço do grupo é testado no novo mundo da cegueira, sendo este um momento intermediário. E a casa do médico, aonde o individualismo é superado por completo é o céu, o paraíso. Todo o mal está purgado das cenas que compõem esse momento da casa do médico e da esposa. As personagens todas estão livres de todo o "mal" e comemoram com sorrisos de plena felicidade chegarem a esse "Éden" de sua relação social.
A ausência de nomes para as personagens é um recurso para acentuar essa necessidade de coletividade baseada em afeto humano transmitida no filme. O trunfo do livro é transmutado para as telas, embora o roteiro tenha encontrado os empecilhos que citamos para isso. A personagem principal no filme é sem dúvida a mulher do médico. Ela foi a única que não foi atingida pela cegueira misteriosa e irá guiar todos os demais pelo assustador mundo em que a narrativa da história os enfiou.
Ela é a mais solidária do grupo e foi a responsável pela união de todos, do início ao fim. O que nos faz classificar o arco narrativo de sua personagem como um Arco Plano, segundo ideário de construção de personagens em histórias fictícias estabelecido por K.M. Weiland e difundido pelo SBC. O Arco Plano é quando a personagem central da história é conhecedora de um valor positivo e tenta transformar todos em sua volta na direção desse valor. Ela conhece uma verdade que o seu mundo não conhece e tenta transformar o mundo com essa verdade.
A mulher do médico é de fato a personagem mais solidária de todas. Ela é a primeira a renunciar a si própria para ajudar aos demais e trabalha o tempo todo para convence-los a aderir a essa mentalidade solidária. Ela é contagiante e sua bondade vai incendiando os demais membros de seu grupo, guiando-os, literalmente, para a liberdade em relação aos seus mundos mesquinhos e separados para um valor de igualdade e respeito mútuo.
Como é típico desse arco, a personagem duvida em vários momentos se a sua "verdade" é mesmo o melhor caminho. Ela sofre para lutar por essa verdade. Sofre para tentar convencer aos demais. Mas persevera e segue em frente, superando todos os obstáculos do caminho. E outra característica pode confirmar esse arco narrativo plano. Ela é a única que consegue enxergar. Transmite esse poder aos demais. Metaforicamente, podemos dizer que ela vê a "verdade" da solidariedade humana e trabalhará o filme todo para transmitir esse valor aos demais.
No fim, quando o clímax do filme acontece e estamos no epílogo, o primeiro a ser abatido com a misteriosa cegueira recupera a visão. O filme termina com todos celebrando esse momento e com a certeza de que todos se recuperarão. No livro todos se recuperam, o filme deixa sugestionado, mas unido os dois, sabemos que esse é o destino da cegueira misteriosa. E quando a mulher do médico achou que seria a vez dela ficar cega, isso não acontece.
Porque ela não está em nenhum momento sob a cegueira da individualidade humana mesquinha. Então não faria sentido que ela ficasse cega na história, confirmando relativamente o ponto de vista desta crítica. Por falar em clímax, o filme obedece ao roteiro básico do cinema padronizado por uma estética Hollywoodiana. O primeiro ato, aonde se desenvolvem as personagens significantes da trama vai até meia hora do filme.
O segundo ato vai desde a chegada dos bandidos no que chamamos aqui de "inferno da individualidade", até o fim do "purgatório das ruas" - que é onde está geograficamente situada a "aventura de fato", que no filme é o novo grupo enfrentando o novo e perigoso mundo da cegueira misteriosa.
E o terceiro ato, com os já citados clímax e epílogo, é a chegada ao "paraíso da solidariedade humana".
Mise en Scene, presente!
Para a SBC, nada num filme é por acaso ou só porque seus autores acharam bonitinho. Na linguagem audiovisual há sempre elementos que comunicam mensagens se comunicando com o nosso cérebro em níveis tácitos, e na maioria das vezes nem nos damos conta dessas dinâmicas como foram trabalhadas em cena. Quem tem acompanhado as críticas aqui no blog do Devir Cinema, sabe que guardamos lugar especial para a Mise en Scéne - tudo o que vemos em cena - dos filmes em análise.
Para Bruno Albuquerque, o som não faz parte da Mise en Scéne. Esta seria o conjunto de tudo o que vemos em cena, na imagem. A crítica aqui é sempre feita em conta com este preceito. No entanto, um filme sobre a cegueira (ironicamente) tem aspectos visuais que se sobrepõem ao desempenho do som, tornando este um acompanhamento. Não menos importante, claro, mas um complemento. Por isso, esta análise de Mise en Scéne já vai tocar em aspectos sonoros, dispensando uma seção aqui no texto só para ele.
Vamos falar do aspecto imagético principal deste filme, trabalhado pela Direção de Fotografia. Como sabemos, este setor de todo filme é responsável por tudo o que vemos no quadro. Para a SBC, a posição das câmeras e os ângulos de enquadramentos fazem parte dessa direção. Mais uma vez, vamos com essa premissa. E a parte que mais importa para este filme é a iluminação e a psicologia das cores, trabalhadas diretamente pela Direção de Fotografia.
Na história, uma misteriosa cegueira se abate sobre todas as pessoas e dá a entender, da maneira como se propaga, ser oriunda de uma desconhecida doença contagiosa. A característica principal dessa cegueira dá o tom principal dos significados de cores e do trabalho de iluminação. O filme alterna momentos de escuridão com uma luz branca estourada e que por vezes toma conta dos planos por completo. Aí é evidente a intenção. O filme faz com que o público experimente em vários planos a mesma sensação de cegueira que se abate sobre as personagens.

Mais do que isso, no início dá todos os indicadores do fato de que a cegueira vai tomar conta do universo do filme. A primeira cena é o chamado paciente zero ficando cego no exato momento em que estava com seu carro parado no sinal vermelho e, quando muda para verde, ele não consegue dar a partida - exatamente porque ficou cego. Detalhe das cores aqui começa no sinal. Há um plano detalhe (enquadramento bem próximo do objeto filmado) mostrando as luzes do sinal se alternando de verde para vermelha, pontuando o ritmo urbano do trânsito.
Não se mostra a luz amarela do sinal em nenhum momento, nem quando o plano abre e mostra o aparelho por completo na tela. Seria a Mise en Scéne comunicando que iremos para dois extremos opostos no filme, sendo o verde a representação da normalidade do fluxo das coisas e o vermelho a indicação de que teremos uma situação violenta e perigosa logo a seguir? Possivelmente sim. Mas o que chama a atenção nesta primeira cena é que a iluminação já dá o tom do fato principal do filme - a cegueira branca. A iluminação dá uma matiz toda esbranquiçada para as imagens.

O branco chega a estar estourado a um ponto que o carro do paciente zero, o japonês, é uma cor de prata clara, mas parece que o carro é todo branco. Todas as outras cores, nestes enquadramentos perdem força, mostrando que a cegueira faz a pessoa ter a impressão de que está mergulhada em um leite homogêneo. Os momentos escuros dando um contraste com esses mais claros, podem indicar espaços que abrigam relações sociais deterioradas. Percebe-se essa escuridão eventual na casa do médico logo na primeira vez que esta aparece e na casa do Japonês, o paciente zero.
Ambos tem problemas de comunicação com suas esposas, e, embora estas se esforcem visivelmente pela relação, sendo gentis com seus maridos, percebe-se as mulheres incomodadas nos casamentos. Especialmente a personagem principal, a mulher do médico. A japonesa não sorri e está sempre empenhada em obedecer à tendência fortemente patriarcalista típica da cultura japonesa - ser uma esposa dedicada, não importa o quanto o marido a trate mal. A mulher do médico ri, mas é um riso forçado, de quem está fazendo de tudo para fingir que as coisas andam bem.

Aqui já temos que falar na Direção de Arte, a sessão do filme responsável por todas as "coisas" que aparecem no quadro, os objetos - incluindo cenários, figurinos e maquiagens das personagens. Os objetos também carregam a psicologia predominante da cor branca. Desde o jaleco do médico, quando atende o paciente zero, até às cores das roupas dos manequins da loja por onde passa à pé a caminho de casa. Os manequins estão vestidos de branco em sua maioria (esse plano ai não foi gratuito, tenha certeza). Na casa do paciente zero predomina o branco em todos os objetos, nas paredes, na mobília (especialmente os armários da cozinha).
Quando a esposa chega em casa, o japonês está deitado no sofá de olhos fechados e ela percebe que ele se machucou com um vidro quebrado. Quando ela se abaixa para falar com ele ela usa uma espécie de cachecol fino todo branco. E ai a cena onde a iluminação foi trabalhada de um jeito curioso. Geralmente em cenas internas a iluminação finge ser oriunda de alguma lâmpada do ambiente ou da entrada da luz natural no recinto. Quando a mulher do paciente zero descobre que ele está cego, corre para um cômodo - a cozinha - onde procura pelo telefone de um especialista - o nosso médico, marido da personagem principal.

Ela fica numa posição de perfil em relação à câmera, inclinada para a esquerda do plano, procurando o número de telefone em uma gaveta. Atrás, tem uma janela pela qual entra uma luz branca bem estourada, parecendo até a cegueira envolvendo a personagem - antecipação de que ela ficaria cega também, talvez. Poucos segundos depois essa luz abaixa totalmente ao ponto que a escuridão avançada do dia ganha o destaque e ela chega a desligar a luz e ascender alternadamente para testar se o marido consegue distinguir alguma coisa. Curioso é que o plano fica escuro exatamente quando o marido entra na cozinha, talvez comprovando a nossa teoria que a escuridão representa a frieza dos relacionamentos no filme.
E isso fica evidente na casa do médico também. Após a cena dos manequins, corta para um plano onde ele está sentado esperando a esposa servir uma sobremesa. Ele tenta falar sobre o caso curioso do paciente zero, mas o barulho da batedeira que a esposa está usando o impede de continuar a falar. O médico faz uma cara de extremo incômodo enquanto o barulho persiste. O som aqui foi usado para expressar a falta de comunicação de um casal em total descompasso de interesses. A mulher do médico está batendo alguma coisa.

É a clara de um ovo até que se torna totalmente esbranquiçada, num chantili com um aspecto totalmente leitoso. Aqui o branco da cegueira antecipado pela Mise en Scéne de novo, porque quando ela senta na mesa ao lado do marido levando a tigela, a câmera enfoca bem o chantili no plano seguinte. Não foi porque Fernando Meirelles adora chantili, na opinião (humilde) desta crítica. Ela pede desculpas com um sorriso bem aberto, porém forçado. Ela não quer ouvir sobre o trabalho dele, e provavelmente esse é um dos motivos da relação esfriada.
Esse descompasso entre os dois se confirma logo em seguida. A sobremesa o marido nem sabe qual é o nome do doce, e, quando o experimenta, faz uma cara de quem está comendo forçado só para agradar. Aqui entra outro objeto que é bem significativo no filme. A mulher oferece ao médico uma taça de vinho, e ela já estava tomando uma. Ele recusa e pergunta se ela vai continuar bebendo, com um tom de reprovação. A próxima cena em que haverá taças com bebida alcóolica será exatamente no clímax do filme, quando as personagens atingem aquele sentimento de amizade e coletividade máximos.

A taça com bebida alcóolica representa, para esta crítica, a união social entre pessoas que se gostam muito. É a comemoração de um laço forte. No primeiro ato, a mulher oferece e o marido recusa. Sinal de que ela se esforça para fortalecer o laço humano do casamentos e ele está fechado para esse laço. Ela se esforça para a relação ganhar essa vida e ele tem cara de reprovação para as coisas que ela faz nesse esforço. Ela chega ainda na sequência destas cenas a se olhar no espelho com a cara de cansada de tanto lutar pela relação e o médico permanecer alheio a esses esforços, focado em seu trabalho.
Pelo visto, o médico olha para a mulher apenas como alguém para ouvir sobre seus pacientes e para fazer sexo quando ele tem vontade. Fica nítido como ela se sente assim, apenas um objeto sexual, quando, na quarentena, ele tenta acaricia-la lascivamente e ela usa uma desculpa esfarrapada para fugir dele. No filme ela está tão desgostosa com ele que não quer premiar sua frieza com ela com o sexo apenas orgânico. E tanto assim que o médico, no limite de sua carência sexual, acaba transando com a mulher dos óculos escuros, sua paciente outrora, bem no refeitório da quarentena.
A mulher do médico, que instantes antes brigara com ele e o deixara sozinho (mais um momento onde ele chamaria pelo nome dela ao ser abandonado e não o faz, fazendo com que os acontecimentos percam coerência lógica), percebeu que a mulher dos óculos escuros transou com seu marido. Ao invés de se zangar e reprimi-la ela ficou grata com ela, e lhe confidenciou o segredo de que ela podia enxergar. Ao invés de brigar com a mulher que acabou de ter um caso com seu marido, ela estreitou o laço de amizade com ela. Por que isso? Por que ela a livrou desse sexo puramente carnal.
Porque deu à relação do médico com a sua mulher exatamente o tempo de respiro que a esposa precisava sem se entregar ao sexo por necessidade fisiológica e que ela não queria ter com o marido. Aliás, a atriz Juliane Moore não poderia ter sido melhor escolhida para esta Mise en Scéne com franco primado do branco em oposição à todas as outras cores que aparecem na tela. Sua pela de tonalidade branquela casam perfeitamente com a luminosidade de branco estourado do filme.
Ela chega a cumprir, assim, um papel humano dentro das Direções de Fotografia e de Arte no que diz respeito ao impacto da psicologia das cores do universo interno do filme.
Armas de fogo representando a tirania e cenários marcantes
Ora conhecendo as premissas da Direção de Fotografia e de Arte, aonde até a escolha da atriz principal favoreceu a psicologia predominante do branco leitoso, é necessário falar de dois cenários que parecem até personagens da história - tanto no livro quanto no filme. O primeiro aparece no fim do primeiro ato, terminando de desenvolver todas as personagens. É o hospital que serve como quarentena para os "doentes cegos". Nele também começa o segundo ato, quando chegam bandidos armados e tomam o controle de todos na quarentena, pelo uso da força e do medo.
O outro cenário são as ruas após a libertação das personagens da quarentena porque todos foram afligidos pela cegueira. Essa sequência de cenas é quase toda gravada em externas, tendo vários
takes capturados na cidade de São Paulo. Estes dois cenários marcantes são, para esta crítica, o momento do "inferno" e da "transição" para o "paraíso". Vamos ao inferno primeiro. O interior da quarentena tem muitos planos fechados, com ar claustrofóbico. Há uma TV instalada pelo governo aonde aparece um vídeo com um funcionário público explicando as regras do confinamento.
Muitos planos com escuridão predominante nesta fase da história, e, coincidentemente, muitas relações complicadas, especialmente na chegada dos bandidos e a tomada do "poder" por estes. As cores da quarentena são frias (as próximas ao azul e verde), corroboradas pela matiz esbranquiçada predominante em quase todo o filme. O segundo ato, aonde começa a "aventura" do filme em si tem início aqui. O grupo da mulher do médico, do próprio médico, junto com a mulher de óculos escuros e o homem da venda preta, mais o paciente zero e sua mulher, fechado com a presença de um garoto (Mitchell Nye) que se separou da mãe (e que tinha sido paciente do médico no início), será definido e passarão pela aventura de chegar ao paraíso da amizade plena.
Sobreviver à dura quarentena foi o primeiro desafio. Havia mais um candidato ao grupo, mas que não conseguiu escapar à morte. Morte conceitual inclusive, já que suas atitudes mostram que jamais conseguiria aprender a lição de solidariedade que o grupo principal precisou aprender para conseguir êxito na trama. No início do filme, um ladrão (Don Mckellar) ajuda o paciente zero a chegar em casa, mas lhe rouba o carro na sequência. Ele morre em consequência de um grave ferimento na perna e acaba abatido pelos soldados que vigiam os cegos para que não fujam do confinamento.
Direção de Arte com alta representatividade aqui. O hospital abandonado que o governo usa para essa quarentena não tem nenhuma estrutura para abrigar com decência os "doentes". Não se criam mecanismos para orientar os cegos no confinamento, para garantir higiene, principalmente. Pouco a pouco, o lugar vira uma bagunça generalizada, com roupas e papéis higiênicos sujos espalhados por todo lado. Fezes e urina tomam conta do lugar. A Direção de Arte expressou o "inferno" aqui com maestria - nem seria tão difícil conseguir.
Mas esse inferno é o do abandono do governo para com os "infectados". Sabemos que humanos foram abatidos por uma misteriosa cegueira e o que fizemos a respeito? Os largamos em um lugar isolado, os discriminamos, e os deixamos sofrer à própria sorte. Periodicamente, o governo mandava caixas com comida, que não era suficiente para todos. Os soldados que cuidavam da vigília eram grosseiros e tratavam os cegos como cachorros sarnentos. Quando o médico foi pedir remédios para cuidar da perna do ladrão, os soldados recusaram em atender e ainda ameaçaram atirar no médico e em sua mulher.

É a primeira aparição das armas como forma de tirania no filme. A Direção de Arte usada para expressar esse significado da imposição humana pela força numa situação que nos reduziu a um estado de barbárie, pela ignorância e pelo pânico. O governo, no filme, poderia bem providenciar mecanismos para esses atendimentos. Se a cegueira era contagiosa, bastava levar guias usando roupas isolantes. Poderiam orientar os cegos e impedir as condições sub-humanas em que permaneceram no confinamento. Não. Mais barato foi tratá-los como animais e usar da força das armas de fogo para isolá-los, ao mais clássico estilo de tratamento que se dava aos leprosos antigamente.
Outro aspecto do cenário é a presença maciça de grades por todo o lugar, aumentando essa sensação de 'pária' e de 'claustrofobia' da quarentena. Em alguns planos, a câmera filma os personagens de maneira a que o gradeado se sobrepõe aos personagens - propositalmente para expressar esse significado do lugar. Um lugar que deveria ser para acolher as pessoas em dificuldades, é na verdade um "presídio" aonde se prendem pessoas cujo crime foi ficarem cegas e serem percebidas como ameaça à sociedade.

Nada mais sugestivo do que a chegada de bandidos de verdade. Eles ocupam a ala 3 do confinamento e logo estabelecem um reinado de terror. O líder deles, que e autodenominou de o "rei da ala 3", estava armado e usou essa arma para submeter todos as outras duas alas. Determinou que as caixas de comida eram todas da ala 3 e que as demais alas deveriam comprar os alimentos com eles. Quando os objetos de valor acabaram, os bandidos solicitaram que as mulheres das outras duas alas deveriam fazer sexo com eles em troca de comida para suas respectivas alas.
A arma do rei da ala 3 representa, assim como as dos soldados da vigília, a tirania, só que, diferente dos fuzis dos soldados, uma representação da força opressora do estado, estas são a força opressora dos bandidos. Aonde o estado não chega o bandido com seu armamento de fogo é quem dita as regras. Esse bandido toma para si as riquezas que deveriam ser de todos, monopoliza a comida e toma à força as mulheres. A Direção de Arte usada para uma representação que nos é bem familiar à situação das favelas brasileiras, com traficantes e narco-milicianos dando as cartas nas comunidades, com apoio do estado e da própria justiça.
E a Direção de Fotografia reforçou o poder da arma ao mostrar a mulher do médico e o médico em uma plongé (ângulo com a câmera de cima para baixo), manifestando a inferioridade de todos perante a violência brutal proporcionada pela presença da arma de fogo, conferindo ao seu dono e associados o poder absoluto.
As duas alas do confinamento se submetem por medo. Mas a mulher do médico, após ser estuprada pelo rei da ala 3 e de ver uma das mulheres de sua ala ser morta por espancamento porque não conseguiu agradar sexualmente um dos bandidos, se revoltou e resolveu matar o líder dos criminosos. Outra representação aqui é a força das mulheres, que, violentadas, dizem não à opressão machista e tomam o controle dos rumos de suas vidas exigindo seus direitos. O estupro coletivo e o fim do reinado da ala 3 do confinamento, em um incêndio acidental, é o final da fase "infernal" do filme, com todas as características dantescas de sua última cena - chamas, desespero, morte e destruição para todos os lados.
Com a destruição do espaço interno do confinamento, o todos descobrem que não havia mais guardas cuidando os portões e saem para as ruas. O cenário caótico continua, mas as imagens externas são de uma luminosidade maior, com cores mais quentes, o que dá a impressão de que o grupo progrediu ao sair do hospital, ganhando liberdade e superando o ambiente claustrofóbico. A aventura prossegue pelas ruas onde dois momentos merecem destaque. Primeiro, quando a o médico e sua mulher acham um supermercado, ela recolhe vários alimentos, mas é atacada por gente esfomeada que ronda todos os lugares.

Foi o momento de apocalipse zumbi do filme, puxando brevemente a narrativa de terror das histórias deste tipo, contadas no cinema e em seriados famosos. O segundo momento é o que dá o caráter sacro ao filme - e que inspirou esta crítica a pensar os momentos do filme como uma progressão do céu até o inferno. Ao fugirem dos "zumbis", a mulher do médico entra em uma igreja com vários refugiados, visando se proteger da chuva. Lá ela viu várias imagens de santos com os olhos vendados. As vendas feitas em pano branco.

Todos os santos da igreja vendados desta forma. Essa passagem existe no livro também. Honestamente, o que pode significar além de um mistério insolúvel na história, não dá para saber. Saramago (e por consequência, Meirelles) quis dizer que a cegueira era uma espécie de provação divina para a humanidade? Se tratava de um evento metafísico? É mais uma metáfora da cegueira dizendo que os humanos precisam superar sua cegueira para que os bons espíritos voltem a enxergá-los de forma válida. Não dá para saber. Só mais um mistério para deixar no ar questões que dão ar charmoso para a trama? A religião nos deixa cegos perante questões humanas?
Sem resposta para essa questão e talvez fosse essa a intenção de Saramago - e de Meireles.
Conclusões
O filme "Ensaio Sobre a Cegueira" precisa ser visto desde uma ótica separada do livro, embora isso seja impossível com plenitude. É preciso ser avaliada como uma obra cinematográfica e não como uma adaptação de livro. O livro é divinamente perfeito em suas críticas, nas sacadas de seu autor, nos raciocínios que nos transportam para uma dimensão de questionamento sobre o valor da vida.
O filme é de um diretor brasileiro que se aproximou de Hollywood e para isso precisou seguir toda uma cartilha do cinema industrial na elaboração do roteiro e nas gravações. O grande pecado do som é que uma obra lusitana que foi merecedora do primeiro e único Nobel de literatura para a língua portuguesa é um filme em inglês.
Merecia um bom português essa versão na sétima arte. Quem sabe no futuro isso aconteça, mas é difícil. Mas, quando os planos embranquecem, o som é a única certeza que o público tem de que o filme prossegue, mesmo sem imagem. Assim a sensação de cegueira nos é transmitida em todo sua dimensão de de sofrimento e angústia. A trilha sonora e musical agem bem nesses momentos, aumentando a sensação de que "enxergamos" o mundo igual às personagens. Essa sensação o cinema transmite com mais eficiência do que o livro, sem dúvida.
E o que significa esse branco na cegueira? O que representa a cegueira? Não enxergamos as pessoas enquanto seres humanos. Não enxergamos o outro para além de nossas perspectivas individuais e mesquinhas. A vida humana não tem valor para nós, de verdade. Somos um emaranhado de relações de poder onde estamos nos sobrepondo uns sobre os outros. O Estado não nos enxerga, as deidades metafísicas em que acreditamos com tanta fé não nos enxergam. Nós não nos enxergamos.
Somente a verdadeira compaixão e a solidariedade genuínas podem nos curar de nossa cegueira na qual não passamos de agentes da nossa própria barbárie. Devemos passar a perceber com nossos olhos a verdadeira podridão que promovemos em nossas relações, entender que precisamos evoluir dela e chegar, por relações justas, ao patamar de "gente" onde por fim conseguiremos o verdadeiro estado de civilização de nosso mundo socialmente construído.
Essa é uma leitura possível! Qual é a sua?
Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.