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Mookie (Spike Lee) |
A presente crítica é uma impressão pessoal do jornalista a serviço do Devir Cinema - Cine Clube, Paolo Gutiérrez. Como ponto de vista sempre subjetivo, não se pretende como verdade absoluta do filme. Dessa forma, os conceitos trabalhados aqui podem (e devem) ser questionados e discutidos por qualquer pessoa que sinta vontade de enriquecer o debate sobre esta obra cinematográfica em apreciação.
Um AVISO IMPORTANE é que se você está lendo este texto e ainda não viu o filme, assista-o antes de continuar a leitura a partir daqui, porque a análise te dará spoiler sobre a trama e pode estragar a sua experiência cinematográfica única de entrar em contato com o filme pela primeira vez.
A saga do negro excluído em seu próprio bairro
Falando sucintamente do roteiro como guia escrito de tudo o que acontece no filme, a trama se passa no Brooklin, distrito de Nova York (EUA) destinado à moradia de afrodescendentes e outras etnias reconhecidas na sociedade estadunidense como 'menos valorizadas' ou 'minorias' - assim como são as pessoas de origem ou descendência nos países da América Latina, países asiáticos e também imigrantes de origem europeia, especialmente da Itália.
A predominância em número é absoluta da população negra e pobre, para mais de 90%, de acordo um contraste visual transmitido pelo filme. A história se passa no bairro Bedford-Suyvessant (também conhecido como Bed-Stuy), localizado no coração do Brooklyn. Nessa localidade, Mookie (interpretado pelo próprio Spike Lee) é um jovem que trabalha como entregador na Pizzaria fictícia de propriedade do ítalo-americano Sal (Danny Aiello).
Sal trabalha na administração geral do estabelecimento, cuidando do atendimento ao público e cozinhando as pizzas junto com seus dois filhos, Vito (Richard Edson) e Pino (John Turtturro). No enredo, Sal oferece seu serviço de comida na localidade há 15 anos e todos no bairro gostam de suas pizzas. A grande maioria de seus clientes é a população negra, predominante onde o negócio está localizado.
Mookie é despertado pela manhã por uma transmissão de uma rádio comunitária chamada o "O Rei do Amor", cujo locutor (Samuel L. Jackson) passa partes do dia tocando músicas suaves e românticas. Essa estação de rádio acaba assumindo mais ou menos o papel de uma espécie de narrador dos eventos do filme, pontuando a trama nos momentos culminantes. O detalhe aqui é que não há trilha musical no filme. Ela faz parte da trilha sonora.
A trilha sonora, amiúde confundida com a parte musical dos filmes, compreende as faixas de um filme destinadas aos sons - as falas das personagens e os barulhos que acontecem oriundos das ações ocorridas nas tramas. A trilha musical são as músicas que acompanham e pontuam a trama de acordo com as conveniências do que os autores do filme querem que o público sinta ao reagir às cenas.
A diferença é que a trilha sonora existe para os personagens e eles, eventualmente, reagem aos sons, podem ouvi-los. A trilha musical não existe para os personagens, existe só para o público. Por isso, esta crítica considera que as músicas tocadas pelo "Rei do Amor" no filme, embora cumpram um papel de trilha musical em vários momentos, fazem parte da trilha sonora do filme, porque os personagens as escutam e fazem parte diretamente de suas ações e reações.
Essa fusão entre as trilhas é uma jogada muito interessante do roteiro, dando uma dinâmica diferenciada à trilha musical do que costumamos ver na maioria das tramas. Assim, ao som suave da voz e das canções da estação de rádio local, Mookie acorda e vai se arrumar para trabalhar sob protestos de sua namorada Tina (Rosie Perez). Ela o acusa de ir embora e sumir por vários dias, deixando-a só com o filho pequeno dos dois.
O detalhe é que o filme, em termos gerais, tem a temporalidade localizada naquilo que seria um dia na vida Mookie, acordando para ir trabalhar, trabalhando, voltando para casa e acordando de novo no dia seguinte. No entanto, Tina o acusa de ir embora e sumir por dias. Em uma das cenas, já com a trama razoavelmente adiantada, ela liga para a pizzaria, cobra a presença dele na relação e o acusa de estar sumido há 4 dias, sendo que pela manhã ele estava em casa, dormiu com ela e com o filho na noite anterior.
Um 'furo' no roteiro talvez? Ou o diretor se valeu de alguma espécie de licença poética no caráter metafórico do filme, que é uma característica marcante de seu desempenho audiovisual? De todas formas, o teor da fala tem uma função específica e que é o motivo do roteiro pontuar a história com ela. Esse acusação faz parte da apresentação da personagem "Mookie" ao público. O roteiro encaixa essas reclamações de Tina pela trama e de outra personagem, a irmã de Mookie, Jade (Joiee Lee, irmã de Spike Lee), para mostrar explicitamente um aspecto da personagem.
Mookie trabalha, mas é uma espécie de pós-adolescente relapso com suas responsabilidades - um "vadio", vamos dizer assim. Sem essas acusações de Tina, não conheceríamos nunca esse lado da personagem central. Ficaria para o público a impressão de que ele é um rapaz bom e trabalhador, pacato, querido por todos (exceto por Vito) e "perfeito moralmente", o que definitivamente não é o caso. As acusações das duas mulheres de sua vida tem a função de revelar as facetas de Mookie e concluir o desenvolvimento da personagem.
O desenvolvimento das personagens é um fator primordial para o sucesso da história de um filme. Segundo o sócio fundador da Sociedade Brasileira de Cinema, o cineasta e crítico de cinema Bruno Albuquerque, todo filme tem um roteiro que o divide em 3 grandes atos, o que é uma herança da gênese do próprio cinema quando havia uma relação estreita deste com o teatro. No primeiro ato, acontece a apresentação das personagens, que o desenvolvimento dos participantes da trama - segundo Bruno, ele deve durar no máximo 25 minutos, sob pena da história ficar maçante e travada em parte significativa do filme. O Segundo ato é a aventura da história do filme em si.
Aí o terceiro ato é aonde acontece o clímax do filme, que aquela cena ou sequência de cenas para que são o motivo da existência da trama do próprio filme. Após o clímax, o terceiro ato tem ainda o epílogo, que são as cenas que encerram o universo do filme e dão o ponto final à obra. Neste aspecto o roteiro de 'Do the Right Thing' não teve preocupação em distinguir os dois primeiros atos. Há personagens que estão sendo desenvolvidas durante a faixa que equivaleria ao segundo ato e até mesmo perto do clímax.
O próprio dono da pizzaria, Sal, que aparentemente não é racista, está ainda mostrando parte de seu racismo e de seu lado romântico e doce no encontro com a irmã de Mookie na pizzaria já dentro do que seria o segundo ato. Tina também só tem seu lado doce e romântico revelado já à noite, na cena em que ela encomenda uma pizza de propósito só pra ter um pretexto de se encontrar com o namorado. Isso já bem próximo do clímax, à beirada do início do terceiro ato.
É claro que essas regras de divisão do roteiro não são rígidas, um filme pode muito bem ter sucesso sem segui-las à risca (o próprio filme em apreciação pode ser exemplo disso). Mas vale a pena observa-las para acompanhar o desempenho do roteiro. Para quem é muito acostumado aos filmes típicos de Hollywood, este não é um enredo que seja agradável a uma lógica de consumir cinema só por entretenimento. O dia se arrasta na história e a ação, a adrenalina do filme, só aparecem perto do final o que pode fazer o filme parecer enfadonho.
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Direção de Arte usada para expressar oposição |
Era natural que o roteiro encaixasse imediatamente antes disso uma cena de "Amor" puro, que é o encontro de Mookie com Tina, cena onde esta personagem, como já dissemos, termina de ser desenvolvida. Ela que até então aparecia, como quase todas as mulheres do filme, resmungando e soltando palavrões de toda ordem. Se o lado doce dela fosse desenvolvido lá nos primeiros 25 minutos do filme, isso dissolveria o "Amor" puro da última cena do segundo ato, fazendo com o preparatório do clímax - o "Ódio" puro - perdesse força e prejudicando o desempenho do terceiro ato, estragando o filme, na opinião desta crítica.
O roteiro encaixa várias alusões a fatos da vida real aonde negros sofreram violência. A briga que culmina com a destruição da pizzaria se deu porque Sal quebrou com um taco de baseball o aparelho de som do personagem Radio Raheem (Bill Nunn). Quando a polícia chega, Raheem está em cima de Sal enforcando-o e os policiais o tiram à força de cima do dono da pizzaria, e o matam estrangulando-o com uma chave de Jiu Jitsu chamada mata-leão, usando um cassetete atravessado na garganta. A morte brutal de Radio Raheem foi na frente de todos em praça pública e sem posterior punição aos policiais.
Esse fato remete ao assassinato de Michael Stewart, em 28 de setembro de 1983, jovem negro assassinado estrangulado (da mesma forma que Raheem no filme) pela polícia de Nova York quando foi preso por estar grafitando com aerossol uma das paredes da estação de metrô First Avenue. Os policiais foram absolvidos de todas as acusações, na época. Stewart tinha apenas 25 anos de idade.
Outra alusão a um caso da vida real encaixado pelo roteiro flagrantemente é na cena em que Mookie percebe que sua irmã está sendo cortejada por Sal, com intenções amorosas e sexuais, em um encontro dos dois na pizzaria. Mookie leva Jade à força pelo braço para fora da pizzaria e os dois discutem tendo encostados em um muro. Quando Tina termina de jogar na cara que ela sustenta Mookie e que ele nunca usa o salário miserável dele para pagar suas próprias contas e vai embora, o enquadramento da câmera abre dos planos mais fechados (mais próximos das personagens) para um plano mais aberto, geral, aonde se vê o corpo inteiro dos atores a uma distância considerável.
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Roteiro encaixando mensagens no filme |
O objetivo do roteiro ao encaixar esta e outras alusões é despertar no espectador um olhar crítico ao racismo e a toda a violência dirigida aos negros, social e institucionalmente aceita pelas opiniões públicas, não só nos EUA como mundo afora. E isso acontece, mesmo que o público não conheça os fatos que estão sendo aludidos. E entender essas minúcias que o roteiro apresentou pode ajudar a entender como essa mensagem de Spike Lee está sendo transmitida no filme.
As representações sociais na metáfora da tela
Por isso ressalte-se que olhar o filme de maneira pictórica, como se ele fosse exatamente a história que está sendo contada, é um erro muito comum. Especialmente se falamos de um diretor bastante fora do convencional de Hollywood como o autor deste filme em apreciação. Para poder se conectar com as ideias desta obra, é necessário ultrapassar a história comum que está sendo contada e visualizar as representações que estão na tela.
A começar pela personagem Buggin Out, que lança na trama o motivo existencial da existência do enredo, em termos da sequência narrativa. Ele entra na pizzaria pede uma fatia e solicita acréscimo de queijo. Aqui se percebe parte do racismo de Sal. Ele o atende mal, usa sempre um tom agressivo abrindo mão de qualquer técnica necessária ao bom atendimento em qualquer comércio profissional. Ao servir a fatia, ele nem usa um prato, usa um papel e não o dá na mão do rapaz. A joga em cima de um balcão como se estivesse dando comida a um animal ou como se estivesse fazendo um favor ao cliente.
Existe uma atmosfera ríspida no filme e os comportamentos agressivos são comuns entre os membros da comunidade. Talvez por isso, o cliente negro aqui não se deu conta do racismo com o qual foi tratado. Provavelmente essa também é a razão pela qual a comunidade não percebe o Sal como um racista e todos compram em seu estabelecimento de bom grado. Mais do que isso, todos falam bem dele e de seu serviço.
Mas Buggin Out se senta à uma das mesas vazias para comer sua fatia (todo feliz) e se dá conta que há um "Muro da Fama" na pizzaria. É um mural contendo fotos de artistas e esportistas famosos, e, nele, não há nenhuma celebridade negra. A expressão de espanto de Buggin Out e os planos-detalhes (aquele enquadramento bem próximo de um objeto) que se seguem a essa expressão marcam o nascimento de uma consciência que superou as aparências. Ele se deu conta do racismo de Sal e o questionou sobre a ausência de negros no seu Muro da Fama. Sal quebra mais uma vez o protocolo do bom comerciante e responde de maneira grosseira que se ele queria fotos de negros famosos em destaque que abrisse o próprio negócio e o fizesse lá.
Buggin Out começa a partir daí uma campanha de boicote à pizzaria do Sal até que ele coloque as fotos das celebridades negras na parede. E passa o filme inteiro tentando convencer os outros personagens a aderir ao boicote. Ele acordou para o comportamento racista de Sal e chamou a coletividade para repudiar esse racismo. Ora, na opinião desta crítica, ele representa o ativismo, aqueles que têm consciência crítica do mundo em sua volta e querem mobilizar todos em torno de causas justas, por um mundo melhor. E como os ativistas da vida real, quase ninguém o escuta.
Próximo ao fim do segundo ato, ele encontra alguém que lhe dá razão e se junta a ele no boicote. Radio Raheem já tinha se incomodado com a grosseria de Sal e concordou que faltavam os negros no Muro da Fama, fazendo coro à reivindicação de Buggin Out. Além dele, Smiley (Roger Gunveur Smith) que é um jovem com deficiência mental e que tenta vender fotos de Malcolm X e Martin Luther King a dois dólares cada. Ele foi expulso da calçada da pizzaria por Vito, filho de Sal, e se chateou da forma brutal como foi tratado, expulso a gritos e com empurrões de um espaço público, só porque estava tentando vender seus retratos.
Smiley representa alguém que está vendendo mais do que fotos, mas as ideias de pessoas que lutaram contra o racismo. A ira exagerada de Vito contra ele, o mais racista entre a família à frente da pizzaria, nesse sentido, se justifica. Vito repudia qualquer defesa aos negros e passa o filme todo expressando isso abertamente. Aqui outra representação (e talvez a mais importante do filme) ganha destaque. Radio Raheem só anda com um grande aparelho de som enorme que toca fitas K7, a tecnologia disponível para ouvir música na época. Assim como Smiley ele é o portador de ideias libertárias contra a opressão ao negro.
Ele ouve apenas uma música, Fight Power, do famoso grupo de rap do fim dos anos 80, Public Enemy. Na opinião desta crítica, ele é mais do que portador de ideias. Ele representa a voz do negro no filme. Essa voz revoltada com o meio social que o discrimina e essa voz que incomoda as pessoas "brancas" pra todo lugar que ele vai. Os negros não se incomodam com seu som. E quando ele chega perto das pessoas brancas ele faz questão de aumentar o volume de seu som e encarar quem se incomoda com semblante fechado, como se estivesse disposto a brigar.
Ele representa a comunicação do negro, essa que grita contra o racismo. E há uma evidência muito forte de que ele representa esse conceito de comunicação. Quando a determinada altura o som para de tocar enquanto ele andava na rua, ele percebe que precisa de pilhas novas e vai até o estabelecimento de uma família coreana para adquirir o que precisa para seu som continuar funcionando. Ele se incomoda com os coreanos porque eles não sabem falar inglês direito. É um tratamento discriminatório por conta da língua sim, mas aqui se o que se destaca é que a comunicação pra ele é muito importante e isso não é à toa - na metáfora do filme, ele é a própria comunicação, aquela que incomoda os brancos porque questiona sua posição de superioridade no meio social.
Ora bem, outra figura metafórica que merece destaque é o Prefeito (Ossie Davis). Ele é um senhor com problemas de alcoolismo que teoricamente ocupa o posto de representante daquele bloco do bairro onde se desenrola o filme. Apesar de ser a personagem mais sensata entre todos no filme, e talvez o mais sábio, ele não tem moral com ninguém, todos o tratam sem respeito e sem dignidade. Vive sendo ridicularizado e diminuído por conta de seu vício. O curioso é que, apesar de andar sempre alcoolizado ele não tem um comportamento de um ébrio de fato. Parece sempre consciente de tudo o que acontece, não caminha de forma trôpega naquela falta de equilíbrio que é comum aos bêbados, está sempre atento a tudo o que acontece e não anda falando besteiras desconexas.
Ele tem um trauma de vida que o deixa com um semblante melancólico e derrotado. Ele representa, nesta opinião aqui, a representatividade do negro na política. Uma representatividade derrotada, deprimida, envelhecida e sem força. E desvalorizada pelo próprio negro. Os negros não se valorizam na política. Além de não dar ouvidos aos ativistas que denunciam o racismo (Buggie Out), não exigem representantes de sua própria causa. Não se mobilizam por isso. Prova é que até hoje em toda a história dos EUA apenas houve um presidente negro - Barack Obama.
Essa metáfora da política em prol do negro desvalorizada pelo próprio negro tem outra componente que é a personagem da Mother Sister (Ruby Dee), uma senhora reconhecida como uma espécie de "cacique" na comunidade, respeitada por todos, mas sempre com um semblante triste. O Prefeito tenta sua aprovação de todas as formas, mas ela talvez seja quem lhe dá a maior reprovação entre todos os personagens. A própria política "negra", por assim dizer, não tem unidade na figura das duas personagens com o ícone propício à representatividade - a larga experiência de vida.
Negros derrotados por si próprios na política e na vida, como os três veteranos (Paul Benjamin, Frankie Faison e Robin Harris) que vivem sentados na calçada observando o sucesso econômico dos "não negros" do bairro que possuem seus próprios negócios. Eles são o derrotismo, a falta de autoestima e de razão filosófica de viver típica dos bairros periféricos aonde se concentram as populações negras pobres. Em seu primeiro diálogo, no primeiro ato, eles chamam a atenção para um racismo que se erige em frente aos seus olhos no próprio bairro "negro" onde vivem.
O racismo no filme está em toda parte, mas ele ganha um conceito especial na fala destes três e que faz parte de um conceito supra de "negro", transcendente à própria cor da pele - mas não desgarrado dela mesma. O racismo econômico. Os veteranos observam que não há burgueses negros num bairro negro. Só pessoas de pele clara é que têm negócios próprios e que prosperam em cima da própria grana minguada que os negros conquistam como proletários.
Outro momento em que se vê esse "racismo econômico" é quando o prefeito vai à venda dos coreanos comprar flores para cortejar Mother Sister. A esposa do dono da venda acha estranho ele comprar as flores, porque são itens mais caros. Ela pergunta quantas e ele responde que quer todo o ramalhete. E ela insiste que custa muito dinheiro, e ele pede pelas flores mesmo assim. Aqui esse preconceito econômico dirigido ao negro é evidente. Mais um comerciante quebra sua postura profissional e em vez de atender o cliente no seu pedido insinua que ele não teria grana suficiente para o produto. Ora, se ele estava pedindo, é porque tinha dinheiro e para a vendedora apenas isso importava. Mas não, porque ela pressupõe que um negro, por ser negro, não teria tanto dinheiro para comprar flores em grande quantidade.
Nesse racismo econômico ai, "Negro" não é só a pele, mas sinônimo de "pobreza", "miserável", abaixo do patamar de "consumidor". E se um negro tem sucesso na vida, ele então é como se fosse "menos negro". É como se evidencia na conversa de Vito com Mookie, aonde este pergunta ao ítalo-americano quais são seus ídolos. E constatando que todos são negros, Mookie questiona o seu racismo, ao que Vito responde que esses negros de sucesso são "menos negros". Porque um negro de fato não pode ser alguém rico, alguém vencedor. "Negro" assume uma posição sinônima com "perdedor", com "alguém abaixo do nível humano".
Somente Mookie, no filme, pode quebrar esse ciclo de racismo ao negro dentro da própria morada das pessoas negras. Só ele pode "fazer a coisa certa". Ele representa na tela o próprio negro em si.
Como a Mise en Scéne ajuda a comunicar essas representações?
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Vermelho, a cor-tônica do filme |
Mise en Scéne em cinematografia profissional em termo francês, também oriundo do teatro, que significa "tudo o que está em cena". Segundo Bruno Albuquerque, esse conceito engloba tudo o que aparece no enquadramento do filme, menos o som. Trata-se do lado visual do "audiovisual". Bruno destaca que em se tratando de um filme absolutamente NADA do que aparece na tela é gratuito. E com esse olhar que esta crítica estabelece seu marco para analisar as cenas.
A parte da direção de arte (cenários e todos os objetos do filme, bem como a maquiagem dos atores) é bem humilde. Apenas se escolheram os locais para filmar de acordo com a intenção comunicativa do diretor e os figurinos são roupas usadas no cotidiano das pessoas que vivem em bairros periféricos dos EUA. Os objetos também com certeza não exigiram da produção grandes buscas. Essa simplicidade ajuda a contar a história do filme, a ressaltar o lugar de humildade em que as personagens estão inseridas.
Na parte da direção de fotografia (iluminação e enquadramentos) há um vasto arsenal de técnicas cinematográficas cruciais para transmitir as ideias do filme, das representações que aparecem na tela. A iluminação não apresenta grandes inovações. Boa parte dos takes (gravações) foram feitas com a luz natural, alguns rebatedores para fazer preenchimento nas tomadas internas (lugares fechados) e também nas externas (lugares abertos). Luz de preenchimento é quando é necessário que o rosto de um personagem apareça todo iluminado e a luz principal (que no filme parece a luz natural na maioria do tempo) gera sombra na cara de atrizes e atores.
Não se percebe muito a luz de recorte, que é uma luz artificial vinda do alto para destacar a silhueta das personagens. Talvez ali nas cenas finais, noturnas haja alguma iluminação assim. Agora os enquadramentos e o uso da psicologia das cores são um show de linguagem cinematográfica com sucesso total! Os planos, que são as imagens já capturadas e cortadas (a cada corte no filme temos uma mudança de plano) se abrem e se fecham nos destaques que Spike Lee quer dar a detalhes importantes em momentos bem precisos, o que confere com um roteiro bem pensado e executado.
Os ângulos usados nos planos transmitem muito bem as ideias e são todos bem usados. A começar pelas cores, que dizem respeito à direção de arte e fotografia. A abertura usa o vermelho na roupa da atriz. Essa é a cor tônica do filme! Raríssimos planos não tem essa cor. Na psicologia das cores, como coloca Bruno, há dois significados para ela. Um, o mais conhecido, é a 'paixão'. O outro é o 'perigo', associado também ao 'sangue' e por tanto também à 'violência'. Isso no filme é a significação do "Ódio" puro e do "Amor" puro convivendo lado a lado no universo particular da história contada.
A dança da atriz na abertura, tem tanto movimentos agressivos de luta, como movimentos sensuais. Com a cor vermelha que veste, ela já comunica visualmente essa convivência do amor e do ódio. O vermelho é considerado nessa psicologia das cores do cinema, como uma cor 'quente'. As cores do fulvo, que são as alaranjadas (amarelo, laranja e vermelho) são quentes, em oposição às cores do ciano, as azuladas (verde, azul e roxo), que são frias. Um elemento físico e que influencia o no psicológico das personagens é o calor extremo que faz no Brooklin na época do ano em que o filme foi gravado - a parte mais tórrida do verão.
O vermelho, identificado pelo cérebro humano como relativo ao 'quente', ajuda a transmitir essa quentura para o espectador, sendo outro motivo pelo qual aparece na tela durante o filme inteiro, perdendo força um pouco no final, na parte do epílogo. A metáfora transmitida pela direção de fotografia ai é "Amor e Ódio convivendo em um universo em ebulição". Um grande amor e uma grande violência. Isso se comunica com as duas imagens que Smiley tenta vender a dois dólares cada. Luther King pregava que a militância por um mundo sem racismo deveria ser pacífica enquanto Malcolm X pregava que a violência em determinados momentos é uma atitude de inteligência contra a opressão.
A Mise en Scéne se dissolve a convivência dessas duas ideias pelo filme em frente aos nossos olhos, impregnando o filme com essa oposição, e nem nos damos conta disso. Essa comunicação visual é genial e prestar atenção a ela ajuda a compreender a comunicação do filme, essa que está fora da lógica de entretenimento usual de Hollywood.
Nos enquadramentos idem. Há 4 tipos de ângulos para os planos. Normal, aonde a câmera enquadra paralela em relação ao chão, Plongé, aonde a câmera está inclinada (geralmente 45°) de cima para baixo, Contra Plongé, aonde a câmera está inclinada de baixo para cima, e Ângulo Holandês, aonde a câmera enquadra o personagem em uma posição torta. Aqui ganham destaque as Plongés e Contra Plongés. A primeira, captando de cima para baixo, é usada para expressar inferioridade àquilo que se está filmando, quando um personagem está em posição diminuída em relação a outro ou a alguma situação. E a Contra Plongé é o contrário, é quando o personagem ou objeto enquadrado estão em uma posição de grandeza, superioridade, altivez.
Então, dissemos que o Prefeito da quadra do bairro é menosprezado e desrespeitado por todos. Os ângulos de Plongé são os mais comuns para ele. A única vez em que ele aparece em Contra Plongé é quando Mother Sister vai enaltecê-lo (somente um pouquinho) por ter salvo a vida de um menino ao impedir que um carro o atropelasse. Como na cena a noite já está chegando, um poste se acende atrás dele no outro lado da rua para justificar uma luz dourada que preenche seu rosto no exato momento em que ele se sente um herói e conta uma história de quando ele fez seu time de baseball vencer com uma arrancada espetacular. O dourado aqui é cor de nobreza, de riqueza, de sucesso e a luz com essa tonalidade, somada à Contra Plongé, comunicam um sentimento heroico que toma o personagem naquele momento.
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A misteriosa Plongé do filme |
Esta crítica tem uma teoria. Outras Plongés são usadas no filme e várias vezes em um plano geral (como já dissemos, a câmera bem distante dos personagens ou objetos, vendo-os de longe). Há um momento em que um plano geral é usado para ilustrar um momento em que um dos grupos de personagens do filme está em uma sacada do prédio aproveitando uma sombra para resistir ao calor sufocante e mais abaixo o núcleo de personagens latinos ouvindo salsa à beira de uma escada. Esse plano, como tudo no filme, não é gratuito e não é só para ilustrar o calor.
Os negros estão acima dos latinos, indicando que aquele bairro é o território dominado por eles porque são maioria - não por domínio social. Todos estão em Plongé, porque todos estão diminuídos. Todos os que vivem naquele bairro, são pessoas socialmente excluídas na sociedade americana. Ninguém olha para a câmera nesse momento, mas o observador que foi identificado por Mother Sister e sua amiga em outra cena está lá.
Outra Plongé a merecer destaque, é quando Radio Raheem entra em uma disputa com os latinos para ver quem tem o som mais alto. Na cena, Radio Raheem aparece em Contra Plongé desafiando os latinos com seu som. Eles também. Aqui os dois lados se sentem engrandecidos na disputa e vão brigar até o fim para ver quem "fala mais alto". Raheem perde a disputa e se retira do local da "batalha". Essa retirada é mostrada novamente em Plongé num plano geral. Se vê Raheem já longe bem pequenininho e logo após os latinos parecem meio que esbravejando para ele.
Nessa cena, a comunicação do negro perdeu para a comunicação de pessoas "mais brancas", mostrando que o negro não tem voz, até no bairro em que é maioria. Mas todos então em uma posição social inferior, e talvez seja isso o que foi transmitido aqui. O observador desse plano geral, na nossa opinião, está lá, embora aqui também ninguém o veja diretamente. Mas ele vai ser visto de novo perto do clímax do filme. Quando Buggin Out consegue convencer Radio Raheem a boicotar a pizzaria do Sal, junto com Smiley. Eles estão em Contra Plongé, porque estão se unindo e se sentem fortes. Agora são um coletivo e são grandes. Irão lutar pelos seus direitos.
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Quem observa os personagens nas Plongés? |
E é verdade! Somos levados a defender, ao longo do filme, a posição racista de Sal. Ora que é que faz diferença uma droga de um muro de enfeite em uma pizzaria. Isso porque a essa altura não entendemos toda essa simbologia do filme. Essa é uma câmera subjetiva destinada a nós. As personagens dialogam com o mundo exterior ao universo do filme. E isso é fantástico! Genial! A Plongé nos comunica ai que estamos olhando para um mundo de pessoas diminuídas, inferiorizadas e excluídas - inclusive por nós mesmos!
Câmera subjetiva é quando o plano representa algo na visão de alguém que pertence ao filme. Nesse ponto, o universo do filme nos traga e não nos damos conta. Sensacional, senhoras e senhores! A câmera subjetiva é usada para nós em outros momentos, como quando Buggin Out está tentando convencer todas as personagens a aderirem ao boicote e todas dizem não para ele. Todos os personagens estão aí enquadrados como se fosse a visão dele, em primeira pessoa. Aí o filme nos convida sentir na pele o que o ativista sente ao tentar conscientizar as pessoas e receber repetidas negativas uma atrás da outra.
Pobre Buggin Out, que a linguagem do filme o castiga por ter essa consciência. Em duas cenas mais ele sofre com as situações de racismo. Quando ele vai avisar Sal que o está boicotando por um balcão da pizzaria que dá para a rua, ele está em Plongé, identificando que está muito inferior à posição do branco burguês. E Sal lhe dá o mesmo tratamento grosseiro e de desprezo do início do filme. Mas pior que isso é quando, também no início do fiome, um branco (John Savage) passa com uma bicicleta por cima do seu pé e ele vai reclamar.
O cara lhe pede desculpas com desdém e vai subindo as escadas do prédio onde mora. Os amigos de Buggin Out, todos negros, fazem pressão para ele tomar uma atitude. O branco vai dando de ombros e enquanto sobe a escada, entra em um enquadramento de Contra Plongé. O filme sinaliza que a posição do branco em relação ao negro na sociedade é tão superior que nem o conjunto de vários reclamando pacificamente, sem agredi-lo o assusta. Novamente entra a questão que perpassa o filme. Qual é a coisa certa a se fazer? O ativismo pacífico parece não surtir efeito, mas a violência também não é uma solução viável. E o clímax do filme vai trazer isso.
Outro momento em que a Mise en Scéne traz essa convivência de "Amor" e "Ódio" é na primeira vez em que Mookie se encontra com a voz do negro, Radio Raheem. Ele mostra seus soquetes com a inscrição "Amor" na mão direita e "Ódio" na esquerda. Então ele faz uma performance para Mookie como se uma mão brigasse com a outra e no final, o amor, que parecia derrotado, vence. Uma prévia de que Luther King tem a razão no fim das contas?
Clímax e Epílogo fechando um círculo vicioso em transformação
A destruição da pizzaria talvez mostre que a paz, segundo as ideias do filme, não é o desfecho que traz a transformação para uma sociedade mais distante do racismo! Essa pizzaria é um mundo à parte no filme em relação ao "personagem" da rua. A Mise en Scéne é usada para demarcar esses territórios muito bem. Na cena em que Vito vai pedir ao pai que se mude para um bairro italiano, Sal lhe responde algo emblemático. Eles estão sentados em uma mesa próxima a uma das vidraças do estabelecimento, aonde se vê bem a rua, embora o vidro esteja levemente embaçado.
Sal diz a Vito "meu filho eu me sento nessa janela aqui há 15 anos e vi as pessoas envelhecerem comendo a minha comida". Na sequência, eles continuam conversando e Smiley, como já citado, aparece na vidraça tentando insistentemente vender as fotos para Vito e seu pai. Vito vai se irritando até que resolve sair da pizzaria para enxotar Smiley. A câmara não o acompanha. Sal fica observando o filho destratar Smiley até que percebe que vai precisar intervir na situação. Ele se levanta e sai também. E a câmera não o acompanha também.
Assistimos à conclusão da cena toda pelo vidro. Isso também não é gratuito! O normal seria uma mudança de plano mostrando aonde está a ação diretamente, que era a calçada do lado de fora. E por que então a câmera não acompanhou para visualizar melhor o local geográfico onde se desencadeia o acontecimento central da cena? Porque esse plano ai mostra como a pizzaria é o mundinho dos ítalo-americanos, isolado do bairro negro onde estão. Um mundo à parte, uma fortaleza, um lugar "especial" para o filme.
Pois bem, no fim do dia, Sal está contabilizando os lucros e orgulhoso anuncia sua felicidade aos filhos. Quando vai se dirigir a Mookie, este está sentado em um lugar que o deixa abaixo dos filhos de Sal, de novo em Plongé, indicando que, nesse mundinho à parte do bairro o negro é um inferior completo. O negro é tolerado nesse território destacado apenas para ser explorado, ou como Mookie é - sendo a ligação proletária (e mal paga) desse mundo com o mundo exterior - ou como cliente sempre mal tratado que vai deixar seus trocados para aumentar a riqueza do burguês branco.
Nesse momento, um grupo de clientes pede para entrar na pizzaria e ela está fechada. Mookie, cansado de mais um dia de trabalho duro, pede que Sal não atenda porque ele quer descansar. Sal o ignora e manda abrir as portas. Os clientes entram e por fim está aberta a porta também para o clímax. Esse já é o terceiro ato. Buggie Out, Radio Raheem e Smiley entram na pizzaria e toda a tensão acumulada expressa à exaustão pelo vermelho recorrente durante todo o filme, naquilo que esta cor simboliza o "Ódio", vai ser externado de uma vez só.
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Ângulo Holandês na fúria de Sal |
Tanto Radio Raheem quanto Sal estão recorrentemente enquadrados nesse ângulo quando se encontram. E aí a o racismo de Sal fica evidente para todos os presentes. Ele pega o taco de baseball e quebra o som de Raheem com selvageria e ódio extremos. Todos param perplexos. Na simbologia do filme, Sal calou com violência extrema a "voz do negro", seu direito de gritar contra o racismo da sociedade. A seguir, Raheem e Sal brigam saem da pizzaria até que a polícia chega, mata Raheem estrangulado, prende Buggin Out e vai embora.
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Contra Plongé cruel |
Após a partida da polícia, todos os moradores, em choque se viram para Mookie e perguntam o que ele vai fazer a respeito. O entregador caminha em silêncio para uma lata de lixo, tira a tampa, e a lança com toda a força contra a vidraça frontal da pizzaria. Todos o seguem e depredam o estabelecimento, botando fogo no final. Emblematicamente, Smiley entra nas chamas e pendura no Muro da Fama a foto de Luther King e Malcolm X, fechando o sentido final da mensagem do filme.
Mas não totalmente. Ainda se destaca uma penúltima Plongé, quando Mother Sister olha para cima e começa a chorar desesperada. Não há câmera subjetiva, ela não olha para nós o público como da outra vez. Para quem ela comunicou seu pranto desesperado? Para o sistema cruel talvez? Nunca saberemos.
No epílogo, um carro altifalante azul, uma cor fria, comunica a todos que o prefeito da cidade convocará uma reunião para garantir que a propriedade privada não seja mais destruída nesse lado da cidade. Na psicologia das cores, azul pode conotar tristeza. É triste mesmo o anúncio do prefeito e suas prioridades. Mórbido e deprimente.
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Plano geral conjunto com ângulo normal |
Um plano aberto em ângulo normal com o corpo inteiro dos dois (plano geral conjunto) os coloca de igual para igual e Mookie dá essa lição para Sal. Fecha a conversa dizendo que vai para casa ficar com o filho e recolhe do chão as notas de 100. O plano vai abrindo no caminhar do Mookie, de novo em Plongé, mas aberto o suficiente para mostrar a rua e o radialista narra seu destino, ir ver o seu filho - mais uma vez buscando a "coisa certa a se fazer".
Mookie passa o filme "pisando na infância". A Mise en Scéne é usada para mostrar isso quando ele ia entregar uma pizza e passa por cima de um desenho que uma menino estava fazendo com giz no chão. Pisa no desenho na ida e na volta. O personagem central se propõe a ser uma pessoa melhor e, no caminho para casa, ainda dá uma nota de 100 para um amigo que lhe pede.
Conclusão
O filme peca ao não delimitar seu primeiro e segundo ato, mas tem um motivo artístico para fazê-lo. De resto, é um filme genial e irretocável e a "coisa certa a se fazer" é recomendá-lo. Todos deveriam vê-lo e refletir sobre as ideias que transmite. Elas estão bem atuais.
Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.
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