Não há utilização convencional de diversos aspectos no universo particular do enredo com relação aos aspectos normalmente trabalhados num cinema mais ocidental. A maneira de usar as cores é um bom exemplo disso. Foge bastante do que é o costume no cinema. Nem por isso, a narrativa perdeu. Apenas exigiu mais do nosso olhar entender os signos a serviço da mensagem pretendida por sua autora.
AVISO IMPORTANTE a você que está lendo esta crítica! Veja o filme primeiro [Clicando aqui!] antes de continuar esta leitura! Não há como destrinchar o filme sem dar spoilers e estragar a experiência de assisti-lo pela primeira vez. Outro lembrete importante é que este comentário aqui se trata da visão pessoal do jornalista a serviço do Devir Cinema, Paolo Gutiérrez, e não se pretende uma verdade absoluta sobre o filme.
Arco narrativo principal e secundários
Com relação ao roteiro, a personagem principal é bem definida e clara a olhos bem vistos, desde o primeiro plano. Adjara (Amélie Mbaye) começa uma viagem de ônibus partindo de Dakar e que atravessa parte do continente africano, passando por países como Burkina Faso e Nigéria. Na passagem de uma nação para outra, sempre há o problema de atravessar as fronteiras, que são os lugares aonde a trama ganha suas complicações. O destino final dela, assim como de suas coadjuvantes, é Lagos.
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Adjara em um plano por "cima do ombro" |
Apesar da inocência, a personagem tem valores morais humanitários muito convictos e se esforça para fazer com que as demais pessoas em sua volta tenham a mesma perspectiva - um jeito de ser solidário e de ajudar sempre o próximo em dificuldades. Podemos dizer, então, que a personagem foi elaborada em um arco narrativo plano, de acordo com os preceitos da escritora especialista em narrativas em geral K.M. Weiland em seu livro Creating Characters Arcs ("Criando Arcos de Personagens", em inglês), como foi divulgado pela Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), em live realizada por Bruno Albuquerque no dia 20/10/2020.
A segunda personagem em importância, uma muambeira que, ao contrário da "heroína" da história, é experiente e já tem 15 anos na atividade de comprar mercadorias em país atravessá-las pelas fronteiras, conhecendo bem as artimanhas para isso. Seu nome é Emma (Sy Savané Naky). Dominadora da dinâmica que rege as idas e vindas de país para país no continente, ela acredita em uma "mentira" motivada por um fantasma - um evento trágico do passado. Assim ela é uma personagem do arco da mudança positiva, que ela experimenta ao longo da trama.
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A durona e sempre desconfiada Emma |
Isso se explica por ser um filme do tipo road movie - uma história que se passa em uma viagem por uma estrada. Não há muito espaço para separações que coloquem personagens de caráter central na trama muito distantes por muito tempo. Até porque exigiria planos e montagens que mostrassem histórias paralelas, o que exigiria um orçamento e liberdades de locações que, sabemos, os realizadores do filme não dispunham.
Assim, o roteiro nos leva com a personagem principal e as suas secundárias. As outras, uma acredita em uma "mentira" e tem um fantasma, mas ela não está em atitude que gera mudança positiva. Ela já tem uma atitude positiva perante a vida, que é a jovem adulta, quase adolescente. Ela foi enganada pelo noivo que a fez viajar com remédios ilegais para levá-los a traficantes do outro lado do país. Ela acha que é um comércio legal e que o noivo usará o dinheiro que ganhará na transação para se casar com ela.
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A "obesa" e a "adolescente" |
A irmã a perdoou, ela passou a compreender que não precisava fugir da família para se redimir (a "mentira" em que acreditava) e está viajando de volta para participar do casamento da irmã, a convite da própria. Essa é uma personagem que esta crítica vai chamar de estar em um arco narrativo superado. Uma personagem que no filme já vive um epílogo. Há um clímax para ela que estaria por vir, que é o motivo de sua viagem - o casamento da irmã - mas ela não chega lá.
Eventos motivados pela adolescente e seu relativo arco de queda fazem com que a viagem das 4 se atrase e elas acabam por cair numa estrada deserta de policiamento, aonde seu ônibus final é assaltado e, para salvar a principal, acaba morrendo. Uma morte que faz sentido para o roteiro, já que ela vive um pós final de história, desde o ponto de vista da narrativa como a coloca K.M. Wiland. Seu clímax, que seria o final feliz de se reencontrar com a irmã para fazerem as pazes pessoalmente é uma frustração necessária ao tom de crítica que a narrativa imprime durante todo o filme.
As mulheres estão em uma viagem que, metaforicamente falando, representa a vida de uma mulher africana. Uma "estrada" difícil, num mundo dominado por homens, vítimas destes e acossadas o tempo todo. É uma crítica de viés feminista. Todos as autoridades que aparecem nas fronteiras são homens. Todos os agressores que lhes colocam dificuldades são homens. Esta personagem então, já em epílogo no filme, foi a destinada a representar o feminicído na trama - o assassinato injusto das mulheres por homens por motivos banais, como é comum nas sociedades, não só africanas, como do mundo todo.
As mulheres se submetem à corrupção generalizada da trama, se mostram corrompidas, mas não é por opção própria. Elas precisam se adaptar a esse mundo "masculino" para poder sobreviver. Nem mesmo quando a personagem principal seduz o chefe da primeira fronteira para escapar de uma multa indevida por não viajar com o cartão de vacinação, ela sai de sua atitude positiva perante o mundo. Apenas deu "um jeito" para seguir com sua viagem, com sua vida.
No meio da viagem, a adolescente é descoberta em uma das fronteiras com os remédios ilegais e é presa por um soldado que a estupra como exigência para deixá-la prosseguir na estrada. As outras 3 amigas, incluindo a personagem principal, a salvam matando o soldado. Isso culmina com que as 4 passam a ser fugitivas, principalmente a adolescente. No fim, quando uma delas é assassinada e elas conseguem chegar ao destino, as 3 se separam e a adolescente dá um jeito de reencontrar o noivo. Enquanto chama a polícia, ela o assassina com um tiro.
Esse é o clímax! Enquanto a personagem principal fala um discurso onde narra toda a dificuldade das mulheres africanas ao longo de sua vida e citam os machismos aos quais estão submetidas, a adolescente faz valer aquilo para o qual o filme existe. A crítica a esse machismo é o motivo do filme. O tiro da adolescente em seu noivo é simbólico também. Representa o "basta!" a essa lógica tenebrosa que vivem as mulheres. O detalhe aqui é que o clímax encerra o filme. O epílogo do filme, as cenas que dão ponto final à história, dando sentido à conclusão, acontece antes, mostrando como terminaram as outras personagens.
Um filme é dividido em 3 atos. A maneira como o terceiro ato é finalizada é peculiar deste filme. Geralmente, o clímax (a cena para a qual o filme existe) acontece antes do epílogo. Em "Fronteiras" ele é usado para concluir o epílogo. Muito bem pensado. Isso acaba por compensar o ponto fraco do roteiro. O primeiro ato é onde se desenvolvem as personagens, onde se apresentam as personagens para o público. O segundo ato é onde a aventura de fato acontece. Neste filme os dois atos não tem distinção.
O filme já começa no segundo ato, na aventura em si, e as personagens vão sendo apresentadas com a aventura em andamento. Assim, não há um momento de respiração no desenrolar da trama. Ela vai desde o início, com a viagem, e só há um momento em que há esse descanso do ato de viajar no filme - justamente quando viagem termina e acontece o terceiro ato. Isso produz um efeito em que o espectador acaba por sentir o cansaço da viagem que as personagens sentem.
Porém esse cansaço faz com que o público se arraste pelo filme em determinados momentos, desejando o fim dele da mesma maneira que desejamos o fim de uma viagem longa e cansativa a certa altura da mesma. Podemos dizer que essa fusão entre primeiro e segundo ato, deixa o filme um tanto problemático em sua narrativa porque exige uma certa paciência do público de entender que não se trata de uma narrativa convencional e que é necessário ter paciência para um final que vai valer a pena - e muito!
Mise en Scéne com "coisas" em 2º plano e com função de cores não tão definidas
A Mise en Scéne é um termo que vem do francês e em teatro significa tudo o que está em cena. No cinema, significa tudo o que está visivelmente no enquadramento - o que exclui a análise do som quando se usa o termo, na acepção preferida da SBC. Claro que, como em todo filme, a narrativa tem suporte na Mise en Scéne em "Fronteiras". Porém, não há função simbólica mais aparente para o universo de objetos e iluminações no filme.
Os ângulos dos enquadramentos são pouco usados, sendo normais (paralelos em relação à linha do chão) na maior parte do tempo. Há objetos representativos durante toda a trama, mas a maior parte do universo deles, incluindo os cenários, parecem mais aleatórios do que propositais. Talvez o baixo orçamento que transparece no filme o obrigou a adotar uma linguagem cinematográfica mais realista. Isto é, a copiar os elementos mais como acontecem na vida real, mais do que propriamente usá-los para comunicar eventos futuros do filme, por exemplo.
Nessa pegada de "neo-realismo" africano, por assim dizer, as cores usadas pela direção de fotografia (enquadramentos e iluminação) e pela direção de arte (todas as "coisas" que aparecem no filme, desde os cenários até os figurinos e apetrechos, objetos além da maquiagem dos personagens) têm significados, mas às vezes parecem de utilização sem construção de mensagens subliminares por meio de estímulos inconscientes para reações naturais do público.
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As 3 cores principais logo no início |
Mas a regra não segue essa risca. Há mulheres usando tons de azul predominante também, embora em número bem menor. Então, até a metade da trama, mais ou menos, o azul não representa 'tristeza'. A própria personagem principal usa um vestido todo azul num momento de alegria, quando consegue dobrar a resistência da principal coadjuvante e se tornar sua amiga. Ela us um vestido azul num momento de alegria que ela transmite com um sorriso sincero, mostrando os dentes e tudo mais (sinal de um sorriso profundo, cuja alegria não é superficial).
No entanto, no final do filme, no momento das duas personagens principais irem comunicar a morte da amiga para a família, vemos o azul associado à tristeza. No primeiro plano do filme pode estar a significação principal dessa cor. Muitos homens a usam, o que pode ser referência ao machismo - e que estão submetidas a ele, cercadas e revestidas com ele. Mas concomitante a isso, pode significar também a pobreza. Praticamente todos os personagens são de classes mais pobres. Este sentido duplo explicaria o predomínio dessa cor em vários momentos doo filme, tanto em homens como em mulheres.
Não dá pra ter certeza sobre o azul, mas dá para ter certeza sobre o vermelho. No início do filme, a personagem principal é abordada por um homem que lhe pede ajuda para carregar a mala. Quando ela pergunta do que se trata a bagagem, o rapaz revela que são CD´s contrabandeados. Ela se recusa a ajudar, mas cede quando o rapaz lhe oferece um CD grátis como pagamento. Ela pergunta se tem um disco de sua artista favorita e o rapaz a presenteia. A bagagem é passada pela fronteira por "mulas" que contornam os precários postos aduaneiros de bicicleta e devolvidas ao rapaz, que faz o ônibus parar no meio da viagem para pegá-las de volta.
A bagagem é de cor vermelha, o que significa que essa cor no filme está associada ao perigo, à ilegalidade e mesmo ao risco de morte. É um vermelho de sangue. Essa cor está presente em outros dois momentos de visível perigo e a Mise en Scéne a usou para antever um desses dois momentos. Ela está presente em vários planos que mostram as sinalizações da estrada. Claro que é uma cor normal nas placas, especialmente nas de "Pare", mas acaba sendo usada para ilustrar que o perigo SEMPRE ronda as personagens centrais da trama.
Mas é marcante a presença dessa cor no momento do estupro da adolescente (um barril no canto da cabana onde aconteceu a violência sexual) e em um dos ônibus que as personagens seguem viagem. Só um ônibus é dessa cor, exatamente o que elas presenciam uma cena de pessoas acidentadas e ensanguentadas à beira da estrada. Vermelho com amarelo forte. No acidente presenciado pelas personagens centrais, elas ajudam os vitimados e logo depois o carro que virou na estrada pega fogo. Não pode ser só coincidência que justamente o ônibus onde tais fatos aconteceram seja dessas cores.
Os ônibus ou eram brancos ou de cores frias (azul e verde) até aquele momento da viagem. É bem provável que a Mise en Scéne foi usada para antecipar que eventos trágicos, envolvendo sangue e destruição, através das cores desse ônibus. No início do filme, na primeira troca de ônibus que Adjara efetua, há um plano curioso. O ônibus parte rumando ao fundo do enquadramento, dando perspectiva à cena. Nessa impressão meio 3D transmitida por esse ponto de fuga (a partida do ônibus), os soldados da fronteira, trajando azul estão sentados assistindo à partida, bem mais próximos do público.
Logo o plano fecha um pouco mais e os soldados saem do enquadramento e o que ganha destaque é um homem situado ao canto direito inferior do plano, deixando a partida do ônibus ao centro. Esse homem está amarrando uma cabra pelas patas. E a cor da cabra é branca igual ao ônibus em partida. Seria ai a Mise en Scéne sendo usada para comunicar uma metáfora sobre a viagem? A cabra tem os seus meios de locomoção violentamente impedidos de realizar sua função básica de transporte. Talvez isso indique que a protagonista conseguiu passar por aquela fronteira, mas que vai ter um percurso difícil.
A viagem estaria "amarrada", usando uma expressão popular bem típica para dizer que algo tem dificuldade de se desenvolver. Dificilmente esse plano ai foi gratuito. "Ah tinha um cara amarrando a cabra bem na hora da tomada e ai como o filme é de baixo orçamento, foi melhor deixar assim". Esta crítica duvida muito disso. O que nos remete a uma análise da cor branca. Ela está no primeiro e no último ônibus usados pelas viajantes da trama. Indica o meio de transporte, corroborado pela equivalência da cabra branca tendo as patas amarradas?É provável que sim, mas o branco tem outras utilizações no filme. Quando o ônibus que identificamos aqui como "perigoso" por ter as cores vermelha predominante e amarela, remetendo ao fogo do acidente presenciado por Adjara e sua trupe e ao "sangue" - remetendo à situações de perigo da viagem - quebra e para no meio da estrada, o co-piloto da vigem pede carona a um estranho que passava com um carro de carga. A cor dele era branca. Quando as mulheres se tornam fugitivas por proteger a adolescente do grupo do estupro, elas fogem se embrenhando pelo mato e chegam a outro ponto da estrada. Quem lhes dá carona para seguirem viagem são dois homens em um carro de cor branca.
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Contrabandista de CD's e Adjara |
É possível que o branco represente a solidariedade da viagem. Quando uma das personagens centrais morre assassinada, uma ambulância, de cor branca, leva - poucas profissões como a área de saúde tem o comportamento solidário mais destacado como as áreas da Saúde. Estranho que para essa cena de violência, o vermelho não é destacado para antever o perigo. A cena não tem vermelho em destaque no momento do assassinato. A performance da atriz cuja personagem será morta é que é usada para antecipar esse momento.
O que na nossa opinião indica que a Mise en Scéne está submetida às expressões humanas para comunicar a mensagem do filme. Nessa lógica, a psicologia das cores, bem como os objetos ganham um segundo plano em relação ao aspecto humano, aos diálogos e às expressões das atrizes - estas que são o centro do universo no filme. O baixo orçamento explica isso? Talvez, mas pode ser intencional também. Assim como os dois filmes que avaliamos anteriormente aqui - "Faça a Coisa Certa" e "Café com Canela" -, "Fronteiras" se preocupa em mostrar que o ser humano é a coisa mais importante da mensagem a ser transmitida,
E a Mise en Scéne menos focada nas "coisas", nos fatores "não-humanos", enquadramentos com destaque para os gestos e expressões das pessoas e suas reações, pode ter propositalmente sido trabalhada dessa forma. Encaixando sua intenção comunicativa com as limitações financeiras que a produção com certeza enfrentou para gerar o produto final na tela.
Direção de arte usada na metáfora transmitida
Mas esse aspecto menos coisificado não quer dizer que o universo peculiar do filme não use também os objetos de forma hábil na transmissão da mensagem. Dissemos que o roteiro pode ter construído uma metáfora associando, de forma bem evidente (na opinião desta crítica) a 'viagem' ao trajeto de 'vida' de uma mulher que nasce e vive na África. O primeiro plano do filme mostra Adjara colocando a cara para fora da janela do primeiro ônibus em que viajava. Suas roupas estão em cor laranja bem quente (cor viva) e as cortinas da janela que as cercam são azul.
Como já dissemos, o azul pode estar associado ao machismo do mundo que a cerca, bem como à pobreza do meio social em que vive. Os objetos - roupas e as cortinas - são usados aqui para mostrar o "nascimento" da personagem no universo do filme. Mulher cheia de vida emergindo de um mundo patriarcalista onde as pessoas têm dificuldade de sobreviver em suas necessidades materiais. Assim a mulher nasce e já ganha o mundo tendo que se virar para sobreviver.Outro objeto que ganha destaque é uma bolsa-pochete que Adjara carrega em sua cintura e onde está todo o dinheiro que possui para comprar mercadorias que revenderá posteriormente. O contrabandista de CD's, sentado ao seu lado neste início de viagem percebe que ela carrega essa bolsa bem rente ao seu ventre. O objeto, mencionado e destacado neste e em outros momentos do filme, praticamente não aparece. Apolline Traoré terá tentado associar a "riqueza" da mulher ao ventre que gera vida e pelo qual a humanidade se prepara para ganhar a luz? É bem provável que sim, na opinião desta crítica.
Mas veja a tendência mais humana da mensagem aqui. O objeto, a "coisa" praticamente não aparece. Terminamos o filme sem ter memória de qual o aspecto dessa bolsa. Como já tínhamos dito, a ser humana ganhando mais destaque do que os seres inanimados do filme. Um momento em que essa bolsa é mencionada também ganha destaque. Quando Adjara e Emma finalmente conseguem virar amiga, a protagonista mostra à sua principal coadjuvante aonde guarda o dinheiro. Esta a repreende dizendo que sua inocência é tal que ela mostra para alguém que mal conhece aonde está guardada sua riqueza.
Adjara consente a crítica como válida e reconhece que em matéria de vigem com fim de transporte de mercadorias ela tem muito que aprender. O curioso dessa cena em termos de Direção de Arte, além do "ventre rico" já mencionado, são as roupas que as duas usam. E o cenário também. Usam vestidos que as deixam imponentes e belíssimas com turbantes típicos da moda feminina africana. Mas as cores dessas roupas são predominantemente azuis. E esse, como já mencionamos, é um momento em que ela estão celebrando sua amizade recém conquistada.
É um momento feliz das duas, mas trabalhado com a predominância de uma cor fria no figurino. No cinema, azul é usado para momentos tristes, ou momentos de frio. Raramente para uma celebração como essa. Também contraria a tese que o reto do filme parece nos dizer, do azul associado ao machismo e à pobreza. Elas estão com dinheiro próprio jantando em um restaurante com aspecto de organizado e limpo - não é uma "espelunca" ou um boteco. E as duas bem vestidas e altivas. Tudo sugerindo um momento de 'empoderamento feminino' e 'independência' de duas mulheres pelas suas próprias forças.Mais que isso, as duas falam de suas riquezas. Emma fala que conseguiu com o comércio de panos dinheiro para que s filhos estudassem e passassem a viver na Europa. E Adjara fala da pequena fortuna que carrega para comprar mercadorias. É um momento aonde a "pobreza" e o "machismo" ao qual o azul está associado no resto do filme simplesmente estão completamente alijados da cena. Aqui o azul pode ter ganho outra conotação. A de hiererarquia: Adjara usa um azul bem clarinho, celeste, e Emma usa um azul escuro com detalhes de vermelho bem escuro. O azul aqui mostra a mais experiente falando com a menos experiente.
A hierarquia está na tonalidade - quanto mais escuro o azul, mais experiente é a mulher em viajar para fins de muamba. E os detalhes em vermelho escura mostram que Emma já passou por vários perigos, estando mais apta a identificá-los, como a própria Adjara admite na cena. Daí virá a cena do ônibus do "perigo". O detalhe é o cenário, a rodoviária também tem as cores amarelas e vermelhas. Homens vestem essas cores também no local do embarque. Não há dúvida que a direção de arte foi usada para antecipar as turbulências violentas que estavam por vir. A viagem, a partir dali, será violenta para a personagem principal e sua trupe.
Nesse ônibus também se percebe, no interior, a predominância do azul em descompasso com momentos de comédia da cena. A personagem que já está em seu epílogo narrativo, cujo nome é Vishaa (Unuwana Udobang), é obesa e tem dificuldade para sentar em um lugar só, impondo à adolescente um sofrimento. Adolescente, chamada Sali (Alizétou Sidi), que já tinha aparecido segundos antes no embarque, se despedindo do noivo. Este usava roupas mais escuras e ela o mesmo amarelo associado à destruição. Ele é um traficante que a engana, e suas roupas podem indicar seu lado obscuro. Ela usa uma cor associada à destruição no filme. Pode estar de acordo com seu arco narrativo de queda em relação à desventura que ela experimenta posteriormente e que faz as outras experimentarem também.
Está ai, finalmente, o núcleo central do filme todo presente no mesmo quadro, com o segundo ato em andamento desde os primeiros planos e até esse momento sem terminar de desenvolver todas as 4 personagens significativas da trama. A SBC diz que o recomendável é esse desenvolvimento ser concluído até o minuto 25 do filme, e ali já passa do minuto 33 e ainda haverá desenvolvimento de personagem sendo concluído bem depois disso. É quando entra no ônibus o que chamaremos aqui de um "estranho no ninho".
Todos as personagens do filme, embora algumas investidas de autoridade, aparentam a pobreza sintomática no continente africano. Menos o homem de terno e gravata, sapato fino que entra no ônibus e flerta com Adjara - a qual lhe responde positivamente com um sorriso. Logo depois, todos sentem um cheiro azedo no ônibus e a Sali confere que o odor vem exatamente do homem bem vestido. Ele tinha adormecido acabado por descuidar-se de suas flatulências com o cochilo. As 4 "heroínas" do filme caem na risada nesse momento. Isso e mais a cena jocosa de Vishaa obesa reivindicando dois lugares perante Sali, praticamente sentando-se em cima dela, não combina com a predominância do azul e outras cores frias, no cenário e nos figurinos.
De qualquer forma, este homem bem vestido com certeza não está com essa aparência porque Apolline Traoré tenha quedas por homens com pose elegante - igual a Adjara. Ele representa um status econômico superior na trama. Embora esteja viajando de ônibus, ele é um advogado e com certeza com poder aquisitivo superior ao de toda a maioria das personagens que apareceram. Especialmente as mulheres. Nenhuma mulher tem aparência de poder aquisitivo maior como este advogado (com problema de gases) aparenta. Para esta crítica, o filme denuncia, com esta utilização específica da Direção de Art, e a posição econômica inferior das mulheres em relação ao sexo masculino.E ele é indiferente ao sofrimento das "heroínas". Ele apenas ajuda Adjara quando esta lhe solicita, mas porque tem interesse sexual e amoroso nela. Deixando seu cartão de advogado com ela, ele fez as vezes de intérprete quando a protagonista tentou ajudar uma mãe com filho de colo em apuros. A posição de autoridade também está só com os homens, o que se vê entre os militares e suas fardas. Só há uma exceção. Quando Adjara está próxima de uma das fronteiras, e além dela só Emma do núcleo principal chegou ao mundo do filme, uma mulher começa a pedir que outros passageiros guardem suas joias, para driblar o controle alfandegário.
O último que ela abordou foi um homem de boné que concordou em guardar os últimos colares. Após passarem pela barreira na estrada, a mulher solicita que homem lhe devolva as joias e este se faz de desentendido, e se recusa a assumir sequer que pegou as joias. Ao passar por um posto policial, uma mulher soldada entra para verificar a identidade de todos os passageiros - a única mulher em posição de autoridade em todo o filme. Sua farda a coloca em posição superior a todos no ônibus, inclusive aos homens. Quando a senhora que teve os colares subtraídos denunciou que o rapaz de boné não lhe devolveu seus colares, a policial usa a autoridade e recupera as joias, escondidas num sanduíche, levando o homem preso.
Mas acaba por levar também a dona das joias presa, por driblar o controle alfandegário. Nem quando uma mulher foi autoridade no filme, ela ajudou outra mulher em sua "viagem" pela vida. O evento mostra a desunião entre as próprias mulheres. Ela tinha o poder para liberar a senhora lesada pelo rapaz de boné e ninguém no ônibus a questionaria por isso. Mas ela resolve não proteger a mulher, levando-a à condenação de um delito cometido por motivo de sobrevivência - provavelmente, as joias são para vender em outro país onde consiga um preço melhor e ajudar a família, igual às outras comerciantes que aparecem no filme.E a cena do estupro de Sali, e todas as consequências que vieram dela, é onde a Direção de Arte foi mais significativa talvez. Fora um barril em vermelho dando o caráter de perigo da cena, já citado anteriormente, é aqui onde a adolescente adquire o segundo dos 3 objetos mais significativos de sua participação no filme. O primeiro é um aparelho celular, que, sendo ela a única do quarteto a usar uma tecnologia mais avançada, serve para marcar com ela é de uma geração diferente das outras "heroínas", usando uma comunicação mais "moderna" que as outras por assim dizer, destacando (pelo objeto) como ela é bem mais jovem que as demais.
O segundo objeto é a arma que ela rouba do soldado estuprador logo após as amigas o matarem e com a qual ela realizará o clímax do filme posteriormente. Quando as heroínas matam o soldado e fogem deixando-o sobre o feno onde forçou o sexo com a jovem, um outro colega dele se dá conta do acontecido e vai até a cabana. Logo que vê o estuprador morto leva à boca um apito para alertar aos demais sobre a situação grave. Mas se contém ao perceber que as calças do colega morto estão abaixadas.
Ele adia o alerta para disfarçar as condições da morte do estuprador, levantando sua roupa. É a Direção de Arte usada para criticar uma sociedade que encobre literalmente "embaixo do pano" a violência sexual que as mulheres têm que passar durante sua vida. E o faz pelo gesto de manipular um objeto do filme - a calça arriada. Após o evento, Sali só pode continuar viagem com as amigas usando um véu e burca que lhe cobrem o rosto todo. No posto da fronteira seguinte, o rosto dela está em um cartaz que revela que ela é procurada. As amigas chegam a ter que escondê-la em uma caixa para que ela possa seguir viagem.
Além da caixa, o véu e a burca são aqui, para esta crítica, a condição mais cruel que uma vítima de estupro tem que aguentar. Ela sofreu a violência, mas ELA é procurada. A vítima sendo criminalizada e esse objeto é usado com sentido metafórico para denunciar esse absurdo que as mulheres sofrem. Nessa situação, a sociedade deveria protegê-la e lhe dar razão, em vez de obrigá-la a esconder a cara e se esconder da própria justiça como se fosse um rato.Na parte final da viagem, outra arma será significativa. Quando o último ônibus é assaltado, Adjara ia ter sua pochete-ventre roubada, Vishaa a protege empurrando o assaltante que lhe apontava a arma na cabeça. Na sequência, o assaltante mata Vishaa com um tiro no peito. De forma cruel, a arma aqui representa o pior tipo de violência masculina contra as mulheres - a que provoca o feminicídio. O gesto de Vishaa é simbólico neste ponto. Ela se revoltou porque outra mulher estava sendo violentada. Violentada em seu sagrado ventre, de acordo com a interpretação desta crítica.
E foi solidária com a mulher que estava sofrendo isso, Adjara, dando um basta na violência machista pela qual estava passando, sendo agredida em um lugar (simbólico) de seu corpo que deveria ser intocável. Pagou com a vida por isso. Adjara desaba no chão em choque pela morte de Vishaa. É a única parte do filme aonde há uma angulações para mostrar sentimentos mais fortes. Ela está em plongé, com a câmera enquadrando de cima para baixo em um ângulo próximo a 45 graus, usado no cinema quando uma personagem ou objeto está em posição de inferioridade. Neste caso, ela está derrubada pelo horror da violência e pelo luto do fim trágico da vida de sua companheira.Após este mórbido acontecimento, temos a cena da praia, aonde as 3 amigas restantes se sentam olhando para o oceano, em luto total. A roupa de Adjara é a mesma do início do filme, só que com a cor extremamente desbotada agora em relação à cor viva no início. Só lavagens sucessivas podem desbotar a cor de uma roupa. Ela não lavou as roupas nos seis dias de viagem que passou. E ainda que lavasse, não deveria ter uma perda de tonalidade tão expressiva. Não há dúvida que a direção de arte aqui foi usada para simbolizar o efeito devastador da viagem sobre Adjara. A tristeza e a dor passaram a fazer parte de sua vida de forma mais contundente - embora ela assuma a certo ponto da trama que apanha do marido.
Na parte final temos o epílogo do filme, como já dissemos, posicionado antes do clímax. Adjara e Emma vão visitar a família de Vishaa e, no velório, o azul das roupas de alguns presentes está agora sim associado à tristeza. Mas há cores quentes também na cena, o que não combina com a psicologia das cores em cinematografia. Porém talvez haja uma mensagem ai de que mesmo com a morte a vida continua.
E o clímax! Adjara discursa sobre o valor da vida enquanto as três amigas sobreviventes são mostradas na sequência de suas vidas. A última é Sali. Deitada na cama refletindo com o semblante de inocência perdida e de ferida profunda. Mas forte. Ela se levanta da cama e se dirige até onde onde mora o noivo. O encontra dormindo e o acorda apontando a arma. Usa o celular para chamar a polícia, e atira na sequência, finalizando o filme no ponto mais alto na cena mais efervescente. O revólver do soldado que a estuprou é símbolo da violência masculina que a mulher não aceita mais e que a dá de volta ao seu agressor, na mesma medida que o mundo masculino a agrediu.A trilha sonora e a voz feminina
Não há grandes desenvolturas da trilha sonora e nem da trilha musical. Esta segunda usa um tema suave recorrente para marcar momentos emotivos do filme ao estilo Central do Brasil. A sonoplastia do filme é básica, usando o que se pode captar pelo microfone diretamente nos takes (gravação direta das cenas) e acrescentado na pós-produção aos planos (imagens que ocorrem entre um corte e outro após montagem do filme). Nenhum filme pode fazer os sons que lhe são importantes na trama todos captados na gravação direta. Sempre é necessário acrescentar esses sons artificialmente após as gravações.
Mas há um uso importante da trilha sonora a se destacar. Fora ele há uma cena em que o som é usado para complementar a montagem. É na fronteira em que acontece o estupro de Sali. Ela foi detida pelos soldados do exército porque levava remédios de um país para o outro de forma ilegal. Esse tráfico de fármacos era o negócio que o noivo dela escondia dela desde sempre e pelo qual a usou como "mula". A cena em que os soldados prendem Sali, começa com um plano mostrando Adjara e as outras duas do lado de fora da sala do interrogatório. Adjara está em destaque, mais ou menos no centro do plano.
O som do diálogo do lado de dentro da sala é possível de ouvir para o público, mas não para as personagens. E isso o plano está fora da sala, corta para uma sequência de planos no interior da sala e depois volta para o enquadramento anterior. O som nos indica que o acontecimento principal da cena é no lado de dentro, mas a reação ao desfecho que o filme quer mostrar está do lado de fora. A montagem usando o som audível (só para o público) do lado de fora é peculiar nesta cena. A trilha sonora ajudou totalmente a construir a plástica que a sequência tem e o que Apolline Traoré queria destacar - a preocupação de Adjara com Sali.
Essa preocupação é o que faz o grupo de amigas perceber que um dos soldados vai estuprar Sali, posteriormente, e essa preocupação que as faz conseguirem defender a adolescente, interrompendo o agressor no ato violento. É essa cena que motiva, no final do filme o clímax, já destacado na análise da Mise en Scéne. Mas a trilha sonora, na opinião desta crítica tem destaque principal nas falas das personagens. E aqui ela é usada para caracterizar a protagonista naquilo que a diferencia de verdade de todas as demais.
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Adjara questionando soldado por taxa indevida |
Mas não é o gesto que a distingue em definitivo. Ela é a única pessoa ente todos que se preocupa com os direitos humanos. Ela é a única que questiona as taxas indevidas. Quando uma mãe com a criança no colo foi impedida de prosseguir viagem e ia ser abandonada sem dinheiro à beira da estrada, ela invoca ela rouba as chaves do motorista e peita o policial que não deixou a mãe embarcar. Ele a proibiu de subir porque ela não tinha dinheiro para pagar uma taxa inexistente ao policial.
Adjara faz com que todos os passageiros exijam que a mãe possa entrar no ônibus. E ela consegue. Ela é a voz de conscientização do povo no filme. Ela é a voz que reivindica justiça perante a iniquidade da corrupção. E isso o que a torna a personagem mais forte de todo o filme. A personagem que brilha mais alto. É a sua voz de consciência pelos direitos das pessoas. Algo que só se processa pela trilha sonora.
Conclusão
O filme "Fronteiras" peca por não ter distinção entre primeiro e segundo ato, já indo para a aventura de cara e demorando demais a desenvolver as 4 personagens principais. Mas esse desgaste proporcionado por essa narrativa não usual é corrigido pelo clímax, no terceiro ato, aonde a montagem o coloca antes do epílogo - de forma brilhante, na opinião desta crítica.
A psicologia das cores está deslocada em várias partes do filme, e parece que só 3 cores tem um significado realmente válido na trama - o vermelho, o azul e o branco. Porém, não há psicologia fixa para o azul, talvez a cor mais recorrente na trama. Em alguns momentos representa alguma coisa, em outros outra e não é usado em sua função de cor fria (remetido a sentimentos melancólicos) se não no fim do filme.
Mas estes aspectos talvez também sejam propositais. Apolline Traoré, segundo informações que circularam no debate da sexta feira (20) estudou cinema aqui na América, nos EUA. Esse arcabouço de informações sobre Direção de Fotografia e psicologia das cores dificilmente não é do seu conhecimento. Tanto que vemos como a direção de arte, embora esteja em segundo plano em relação às interpretações das atrizes, é bem usado pela diretora.
Na cena que antecede o assassinato de Vishnaa, por exemplo, não há nenhum vermelho destacado para usar a Mise en Scéne como forma de antever o perigo que vai acontecer, a morte sangrenta. Só um elemento antecipa a tragédia da icônica cena. Antes do assalto, Vishnaa aparece num plano com um tique nervoso na perna. Adjara percebe a ansiedade dela e lhe pergunta o porquê do nervosismo. Ela explica tudo o que aconteceu com a irmã e que estava indo para o casamento exatamente para selar a paz em sua família.
É um gesto da atriz que é usado para antecipar o assassinato da personagem na fotografia do filme, junto com o diálogo das amigas, e não objetos ou cores. Corrobora nossa tese de que pode haver uma intenção de Apolline Traoré em usar de realismo no filme, deixando de lado as técnicas básicas da cinematografia profissional para construir a mensagem que pretendia transmitir.
A vida é cruel para as mulheres negras em seu próprio continente onde são maioria étnica absoluta, não importa em que país estejam. Em todas as fronteiras, os homens se aproveitam delas para extorquir, violentar, abusar, corromper e exercer poder. Sua união e solidariedade é o único meio que lhes permite sobreviver a própria travessia perversa que a vida lhes impõe.
Se ela quis mostrar isso como acontece na realidade ao máximo, então faz sentido quebrar essas regrinhas da narrativa cinematográfica. Afinal, não acordamos e dizemos "nossa hoje vou ser assassinado então vou usar o azul para expressar minha tristeza perante o fato". Talvez (talveeeez) seja esse o motivo das cores deslocadas. E os primeiro e segundo atos fundidos para que o público se cansasse de propósito, como se estivesse viajando junto com as heroínas do filme.O certo é que não há lugar onde as mulheres não sofram no planeta Terra e o filme mostra isso com um preciso retrato fictício de realidade, buscando mostrá-la como ela é, sem tantas maquiagens ou romantismos. Uma superação da técnica pelo aspecto humano.
Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.
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