Este é um comentário sobre o filme na ótica do jornalista (e agora crítico amador de cinema) Paolo Gutiérrez a partir de conhecimentos adquiridos pelos conteúdos e cursos divulgados pela Sociedade Brasileira de Cinema por meio de seu sócio fundador, Bruno Albuquerque. Nenhum dos conceitos e opiniões trabalhados aqui se pretende como verdade absoluta do filme e são todos discutíveis. Se você que está lendo discordar do ponto de vista aqui manifestado, por favor, questione e ajude a enriquecer o debate sobre esta obra cinematográfica!
Aviso importante, se você ainda não assistiu ao filme, veja-o primeiro antes de continuar, porque aqui darei spoilers que acabarão por arruinar sua experiência característica de vê-lo pela primeira vez sem conhecer os eventos que se sucedem na trama. [Clique aqui para baixar o filme!]
Tendo assistido, acompanhe o raciocínio de uma trama muito bem elaborada do ponto de vista da sétima arte!
Roteiro com arco narrativo duplo
A história do filme se passa em São Félix e seus takes (gravações diretas, que com a posterior edição e montagem constituem os planos do filme) foram feitos nesse município e em outros da região do Recôncavo da Bahia. Na trama, Margarida (Valdineia Soriano) é uma professora que perdeu o filho e, após isso, sua vida perdeu completamente o sentido. Isolou-se do mundo e entrou em estado de luto permanente, remoendo constantemente a dor da perda junto com as memórias, especialmente as do último aniversário do garoto.
Mas esta não é a única personagem central. A jovem adulta Violeta (Aline Brunne) é uma cozinheira de lanches com massa, carne e frango, especializada em coxinhas, que ganha a vida fazendo seus quitutes e vendendo-os de porta em porta, visitando fregueses de toda a redondeza montada em sua bicicleta. Violeta foi aluna de Margarida na infância. A trama revela haver uma conexão muito grande entre as duas, sendo que a professora ajudou a aluna a superar um trauma de perda de ente querido quando esta era uma menina.
Acontece aqui o que vamos chamar de duplicidade na personagem central. Margarida é o motivo de toda a história do filme. Ela é o início, o fim e o meio da história. Tudo acontece em volta dela de maneira convergente à sua situação de drama pessoal, e do processo que culmina na superação do mesmo. No entanto, Violeta e seu círculo social também constitui um centro de narrativa tão significante quanto, e os eventos relativos a ela são de extrema conexão com Margarida. O filme mostra isso de diversas formas e o roteiro é usado para isso de forma evidente.Um filme é sempre dividido em 3 atos. No primeiro, se desenvolvem (apresentam ao público) as personagens participantes na trama, no segundo, a história evolui e acontece a "aventura" de fato, e no terceiro acontece o clímax do filme, que é a cena ou o conjunto de cenas para o qual o filme tem razão existencial de existir, em termos da história que conta.
Nos 3 atos, tanto Margarida como Violeta possuem o mesmo peso e o filme lhes destina a mesma atenção, como duas componentes de um único centro existencial de acontecimentos - aquele que ocupa o protagonismo do filme. Assim, identificamos um arco narrativo com dois epicentros, cada um trabalhado de forma distinta, constituindo duas narrações convergentes trabalhadas tecnicamente diferenciadas porém complementares.
Segundo Bruno Albuquerque em live sobre construção de personagens em cinema, veiculada no dia 20/10/2020, a escritora e especialista em narrativas, K.M. Weiland, em seu livro Creating Characters Arcs ("Criando Arcos de Personagens", em inglês), estabelece que há para personagens centrais de tramas - sejam de filmes, romances ou contos - três arcos universais: o Arco de Mudança Positiva, o Arco Plano e o Arco de Queda.
No Arco de Mudança Positiva, a personagem acredita em uma mentira e está em um rumo de desacerto em sua vida por acreditar nessa mentira. E ela acredita nessa mentira, geralmente, porque há um "fantasma" em seu passado - quase sempre um evento traumático. Durante a trama, a protagonista caminha para superar esse fantasma e deixar de acreditar na mentira que é motivo por sua vida estar travada, atingindo uma evolução que a conduz para um estado mais feliz e mais realizado. Neste arco, o mundo à volta modifica a personagem mostrando para ela que aquela convicção em que ela acredita firmemente está equivocada.
No Arco Plano a personagem já conhece a "verdade", já está em atitude positiva, e corre na trama para mostrar a todos essa verdade. Neste arco, o protagonista meio que "rema contra a maré", luta para oferecer a todos sua atitude positiva e sofre para conseguir esse fim. É comum que a personagem tenha dúvidas sobre a verdade que tenta difundir e é comum que essa dúvida seja transmitida ao público. Neste arco, é a personagem que tenta modificar o mundo à sua volta.
No arco de queda, a personagem começa em uma situação boa e termina por dar tudo errado para ela, fazendo, amiúde, que todos em sua volta experimentem essa queda junto com ela.
Esta crítica aqui considera que Margarida é uma personagem típica do Arco de Mudança Positiva. Ela acredita na "mentira" de que deve remoer para sempre a morte do filho, o "fantasma" que a faz acreditar nessa mentira é a própria morte do garoto, e o mundo à sua volta tenta invadir seu círculo fechado de sofrimento interminável para demovê-la dessa mentira.
E Violeta está, na nossa opinião, enquadrada no Arco Plano. Ela tenta irradiar sua alegria para todos, está sempre dando suporte para aqueles que sofrem com a morte para superar o trauma decorrente dela. E isso porque ela conhece uma "verdade" que ela conhece - a de que a morte deve ser superada por aqueles que permanecem vivos em prol da vida, que, inevitavelmente, continua.
Esse Arco Narrativo duplo é complementaridade daquelas que assumem o centro narrativo da história em "Café com Canela". Margarida é assombrada por seu "fantasma" do passado e o mundo tenta demovê-la da "mentira" de que a atitude correta é se entregar a essa tristeza pelo resto da vida. Violeta é o próprio mundo que invade esse círculo fechado de Margarida e que faz questão de transformar aos entristecidos pela perda fúnebre.
Dois eixos de narração que se completam perfeitamente numa resultante que confere ao filme um ótimo desempenho na tarefa de comunicar o desenvolvimento das personagens e da história em si. A complementaridade é feita na diferença de idade das duas protagonistas. O encontro da "velhice" encerrada em um ciclo aonde permanece desumanizada com a "juventude" alegre e que faz a pessoa, nesse encontro, retomar o seu aspecto humano na sua alegria de viver e de buscar um rumo positivo para a vida é recorrente no cinema brasileiro.
Aqui citamos dois filmes: "Central do Brasil", de Walter Salles, e "Amoras", filme do cinema de Vitória da Conquista de autoria de Patrícia Moreira. O encontro da "velhice" com a "juventude" resultando em uma transformação de Arco de Mudança Positiva é uma das vertentes de uma escola brasileira de cinema, por assim dizer? Não temos a resposta a essa pergunta, seria necessário estudar e debater mais sobre a questão.
Mas podemos dizer que em "Café com Canela" esse encontro foi feito misturando duas técnicas de construção de personagem central de maneira muito peculiar, dando um aspecto único (e interessante) na maneira de contar a história que o filme lança mão.
O desempenho magnífico da trilha sonora
A trilha sonora é uma parte essencial de todo filme e aqui neste filme em apreciação ela foi bem trabalhada. Lembrando que aqui usamos o conceito tecnicamente verdadeiro de "trilha sonora" (os sons do filme, que podem ser ouvidos pelas personagens) que é diferente de "trilha musical" (as músicas escolhidas para pontuar momentos do filme e que não existem para as personagens, só para o público).
Primeiro a fala das personagens, território onde o som estabelece a conexão de lugar para o público, estabelecendo de maneira muito evidente a componente do espaço em que a trama se desenrola. O jeito de falar, com as expressões e as gírias (carregadas do uso corriqueiro dos palavrões como palavras normais do dia a dia), não deixa dúvida que o expectador está sendo transportado para um universo tipicamente baiano da região do estado aonde o filme acontece. Essa aura de lugar é trabalhada pelo som do filme muito mais do que pelo arcabouço imagético do mesmo. Mas não é só isso quando falamos deste desempenho de trilha sonora.
Há uma linguagem metafórica muito forte no filme. As representações o fazem transcender para muito do aspecto pictórico da história contada - como é muito comum no cinema. Assim destacamos a casa de Margarida, um lugar sempre fechado, relativamente mal cuidado. Percebe-se que o universo interno da mente da Margarida, em todo seu luto perene, se esparrama pelos cômodos. É notório que o ambiente interno da casa representa o interior do próprio cérebro da personagem.
O cenário se funde com o universo de sensações e memórias, conceitualmente falando. E a trilha sonora destas cenas é talvez o principal meio que os autores do filme usaram para promover essa extensão da mente de Margarida, aonde sua casa coincide com o próprio universo de seus pensamentos. Os diálogos da última festinha de aniversário do filho e conversas com o ex-marido aparecem o tempo todo como memórias sonoras e complementando a performance da atriz e os trabalhos meticulosos da fotografia e da direção de arte.
Segundo Bruno Albuquerque, comumente repetido em suas lives, a Mise en Scéne, que corresponde a tudo o que vemos na tela em termos de imagem, não compreende a parte sonora do filme. Há controvérsias sobre isso, mas a presente crítica vai por essa linha adotada pela Sociedade Brasileira de Cinema, e por isso sempre avaliamos os filmes com um subtítulo diferenciado entre som e Mise en Scéne.
No entanto, para falar desse jogo de sons deste filme nos permitimos a usar um conceito do filósofo francês, Gilles Deleuze. Em seu livro Imagem Tempo, ele teoriza que o som também constitui uma imagem em um filme e sugere (leitura nossa) que a transposição dessa imagem sonora com a imagem de fato, percebida pelo olho, é que formam a imagem final do filme. E em "Café com Canela" isso é muito forte. O som se torna tão palpável para as personagens, que podemos quase vê-lo em cena.
Nas memórias de Margarida ele povoa a casa transformando a alegria na vida da personagem um evento passado quase impossível de acontecer de novo. Mais do que isso, esses sons acabam por se sobrepor à imagem "visual", por assim dizer, transformando o cenário todo em um eco distante, um cobertor de memória (como diz Deleuze) que atualiza o tempo presente no filme com uma aura de tênebra, no patamar do 'assustador'.
O som é usado como pontuação das montagens entre passado e presente, esse processo de atualização de um pelo outro, como Deleuze coloca. No início do filme, os sons marcam a mudança de planos entre a cena do aniversário do filho de Margarida e o momento de festividade com um churrasquinho na laje, fato cronologicamente situado após o clímax do filme em seu terceiro ato - muitos anos após o aniversário. Barulhos coincidentes nos dois tempos fazem a imagem migrar do presente para o passado (e vice-versa) instantaneamente, como uma ponte de ligação que iguala os dois tempos nas cenas como se fossem um. E, para não confundir a percepção pictórica da cronologia dos eventos, uma música que está tocando no churrasquinho para de tocar quando a imagem volta para o aniversário.
O aniversário de Paulinho foi o último momento de alegria verdadeira de Margarida antes da trágica morte da criança. O churrasquinho na laje é o momento de festividade aonde essa alegria jovial é recuperada por Margarida. É como se fosse um momento só e o interim entre a primeira e a segunda parte desse momento fosse contado a seguir, pela conclusão do primeiro ato e pelo segundo ato todo. Assim mostra-se um hiato na vida Margarida o transporte temporal é feito com um "estralar de dedos" mágico - estalar pautado pelo som, tanto para igualar os dois momentos, como para, concomitantemente, diferencia-los.Outra utilização bem sutil da trilha sonora é a localização temporal dos eventos do filme. Percebe-se que, apesar de ser um filme concebido e lançado em 2017, a história acontece muito antes desta época mais atual.
Percebe-se sutilmente isso na ausência das novas tecnologias no dia a dia das personagens. Não há celulares, tablets, notebooks, e, portanto, nem um resquício sequer das redes sociais de hoje, processadas por esses suportes. Isso provavelmente para não quebrar uma das concepções do filme, que é a valorização do aspecto humano e solidário nas relações. Algo com o que as lógicas promovidas pelo Whats App, Facebook e Instagram não combinariam se estivessem presentes nas imagens
Mas ai surge a pergunta: em que época o filme se passa? É a trilha sonora que nos dá, sutilmente essa resposta. No churrasquinho da laje, há um aparelho de som (velho para os padrões atuais) tocando uma música de Sine Calmon e Morrão Fumegante, O Trem do Amor. Esse reggae fez sucesso em 1997. Como o segundo ato do filme ocorre antes desse reencontro, os eventos significativos do filme, incluindo as memórias, estão localizados na segunda metade dos anos 1990.
Outra música de reggae que fez sucesso na época de Edson Gomes, Vem me Regar, Mãe, reforça essa localização temporal do espectro de acontecimentos em "Café com Canela". O som traz as memórias, marca o sofrimento da co-personagem central, com inserções de transportes temporais, e é usado para responder a pergunta quando?, o que a Mise en Scéne por si não conseguiria fazer - pelo menos não com tanta precisão.
O som aqui é uma imagem de um cinema mais evoluído, como sugere Deleuze, superando a velha fórmula de ação e reação da desgastada concepção do filme convencional, centrado na imagem-movimento, apoderando-se, nos momentos em que ganha o destaque, do próprio tempo da história contada na tela. Ele se torna, em algum nível, uma imagem-tempo, comunicativamente muito poderosa dentro do universo do filme.
A Mise en Scéne brilha
Um dos participantes da discussão sobre "Café com Canela" promovida pelo Devir Cinema, Fabrício Silva Pires, sugeriu que o filme tem um ar de Neo-realismo italiano, movimento de cinema europeu que vigorou no pós- 2ª guerra. Os filmes desse movimento eram de baixo orçamento, focados em dramas da classe trabalhadora. E é verdade. O filme baiano em apreciação não contou com grandes recursos e percebe-se isso pelo figurino das personagens e pela total ausência de efeitos especiais, para além das montagens e dos recursos de edição.
Por isso, a Mise en Scéne teve que ser explorada ao máximo, especialmente nas direções de fotografia e de arte. A fotografia de um filme é tudo o que vemos no enquadramento dos planos. Ela é responsável apor tudo o que se refere à captação da luz - ângulos de enquadramento, tipo de lente usada nos takes (e tudo o mais que compreende a câmera e seus movimentos), e, claro, a iluminação. A direção de arte compreende todos as "coisas" que aparecem nas cenas - figurinos, objetos, maquiagem dos atores e cenários. Todas as duas direções usam a psicologia das cores.
A fusão das duas com o roteiro e a atuação das personagens, com a edição e a montagem, formam tudo o que vemos na tela - a Mise en Scéne. Quando há baixo orçamento para se fazer o filme, direção de fotografia e de arte precisam brilhar, e foi o que aconteceu neste caso. Falando em arte, se a trilha sonora nos deu o espaço do filme, os objetos de cena foram bem complementares ao jeito de falar dos atores. Todos os apetrechos da cosmovisão africana da religiosidade estão presentes nos lares enquadrados.
O cristianismo oriundo do sincretismo religioso também. Há figuras de santos nas cômodas dos quartos, terços pendurados de maneira tão visível, que seria preciso ser um cego para não notá-los. Os turbantes típicos de baianas do acarajé aparecem em vários planos, isso sem dizer das roupagens de mães e pais de santo que foram usadas nos momentos de "velório". Isso tudo marca o aspecto afrodescendente do filme. Estamos falando de uma história de gente negra, personagens com raiz africana e os elementos sócio-econômicos que envolvem o cotidiano dessa etnia na região do recôncavo da Bahia.
Vejam que Violeta não concluiu os estudos, porque se tornou mãe cedo e precisou ir trabalhar vendendo quitutes. Seu marido é um pedreiro. São um casal humilde ganhando a vida com o pouco dinheiro que seus trabalhos de baixa remuneração oferecem. Margarida também é professora, provavelmente já aposentada, o que explicaria não sair de casa para trabalhar. As roupas das personagens traduzem também essa simplicidade, de forma evidente e bem pontuada.
Também a direção de arte é muito bem explorada no aspecto metafórico do filme e ajuda a contar a história. A rosa é um notório elo de ligação entre Margarida e Violeta. As cores na casa de Margarida são predominantemente frias, com destaque para o verde e o azul claro. Mas há um resquício de cores quentes. Em um lugar ou outro, no quarto, se vê uma ou duas rosas quebrando levemente a uniformidade do local. Quando Margarida expulsa Violeta de sua casa, o único jeito da jovem continuar cativando a sua ex-professora é deixando uma Rosa na sua porta todos os dias.
Aqui há um pequeno defeito na trama, na opinião desta crítica. Margarida cede muito rápido a essa cativação sorrindo já para primeira rosa que recebe e já colocando-a num vaso com água. E assim sucessivamente, os dias se passam a casa vai ficando cheia de rosas, indicando que Violeta consegue quebrar a tristeza de Margarida dando um colorido novo em sua vida. A quebra da resistência de Margarida à entrada de Violeta em sua vida triste e atra é muito rápida. Poderia ter sido um pouco mais gradativa. Faria mais sentido para uma pessoa que está há anos remoendo a morte do filho.
Outros dois objetos merecem destaque nessa direção de arte. Primeiro, o gesto que dá nome ao filme. Quando Violeta toca na porta de Margarida pela primeira vez, tentando vender coxinhas e a reconhece, ela volta uma segunda vez. Desta oportunidade, a jovem impõe sua entrada na casa de maneira intrometida, o que é estranho para uma menina que parece tão bem criada em todo o resto do filme - com comportamento sempre educado e gentil. Mas talvez haja uma explicação para isso.
E ela é tão "entrona" nessa cena que ela mesma se convida para um café. Posteriormente, Margarida, para não ser descortês com ela, a convida, retoricamente para o café. O detalhe das duas sentadas na mesa é que Violeta critica o sabor do café e logo depois o serve para a própria dona da casa. Há um ar de constrangimento nesse momento. O café era 'de ontem' apenas requentado e Violeta se oferece para passar um café fresco. Quando ela serviu o café velho para Margarida, foi num copo simples, aparentando estar um pouco sujo.Mas, quando ela traz o café do dia, é numa xícara linda, com porcelana desenhada, bem trabalhada e toda colorida, com pires próprio. Essa xícara simboliza o primeiro contato mais efetivo entre as duas. Um café com canela servido em um objeto com aparência de valioso, colorido, contrastando com aspecto monocromático do resto da casa.
O segundo objeto importantíssimo e que entrou em cena também neste momento é a bicicleta. Quando Violeta força a entrada na casa de Margarida ela entra com seu meio de transporte que usa para trabalhar e a câmera da um close rápido no objeto. Se formos para a lembrança do aniversário de Paulinho, o filho cuja morte é o fantasma de Margarida que a faz acreditar na mentira de que a vida tem que ser vivida de maneira fúnebre e solitária após a perda dolorida, o presente que o menino ganha é justamente uma bicicleta.
A bicicleta simboliza a alegria juvenil, o comportamento moleque, a liberdade típica da infância. E essa alegria pede passagem para retornar à vida da professora. Ela entra sem permissão, como se dissesse "já é tempo de você voltar a ser feliz". Não à toa, o clímax do filme é quando finalmente Violeta convence Margarida a sair da casa, sair de sua masmorra, para ir... aprender a andar de bicicleta.Psicologia forte das cores e enquadramentos interessantes
Falamos ai da quebra do monocromatismo triste da casa de Margarida em alguns momentos. Vamos à psicologia das cores então, já chamando essa direção de fotografia para a presente crítica. Primeiro o branco. Em nossa opinião, essa cor simboliza a morte, no universo particular do filme. Vejamos. Violeta sempre está vestida de forma colorida. E sempre cores quentes, que são os alaranjados e vermelhos. Até algum azul do jeans é bem escuro saindo do tom frio que a cor sugere ao cérebro humano quando é avistada.
Somente em momentos especiais ela usa branco. Justamente nos momentos em que a morte se apresenta. Quando sua avó deu sinais de que ia falecer então, ficou bem claro. A cena começa com ela vestida de toda de branco voltando para casa depois de trabalhar. Ela estava abatida na cena, mesmo antes de perceber, ao ver o marido na porta, que algo estava errado com seu avó. E a cor branca foi usada de propósito para antever segundos antes, esta que é uma cena muito emocionante no filme.
A Mise en Scéne usada para comunicar, pela cor branca, mais um momento de virada na trama. A morte da avó de Violeta será a chave para Margarida, enfim, permitir a entrada de Violeta em sua casa. A entrada da alegria jovial perdida com a morte de seu filho. De saborear o Café com Canela e de permitir que a bicicleta volte a ter um sentido em seu mundo, o da libertação de seu cárcere auto imposto - não dá para andar de bicicleta num casebre fechado.
Violeta usa o branco também para encaminhar o corpo do namorado de seu vizinho Ivan (Babú Santana) de acordo com a religiosidade umbandista (me corrija alguém se me enganei a respeito do nome da religião africana à qual as personagens são adeptas). Quando vai pegar a flor que Margarida lhe deixou em retribuição, sinalizando que vai deixá-la entrar em sua vida de vez, ela usa um pijama com uma camisa toda branca.
Outras evidências que ligam o branco à morte. A lembrança do aniversário de paulinho tem uma imagem de baixa resolução esbranquiçada gravada em uma câmera amadora. O branco está em todo lugar na festinha. O próprio filho de Margarida usa uma blusa totalmente branca. Os copos de refrigerante servido no aniversário, focados pela câmera em plano fechado, são brancos. Aliás, na festinha há um personagem que, para esta crítica, é a própria morte. Há um senhor que aparentemente está dormindo e que as mulheres tentam ofertar-lhe um copo de refrigerante.
Ele cabisbaixo não responde. Em um homem de idade, gordo, que aparenta estar tendo aqueles cochilos espontâneos que pessoas de idade bem avançada, já doentes de velhice manifestam. A roupa dele é branca. Elas não desistem de oferecer-lhe refrigerante, até que ao colocar-lhe o copo na mão, ele se vira para todas sorrindo, como se estivesse ouvindo o tempo todo o que lhe diziam. Como se se recusasse a participar do movimento festivo. Era a morte dizendo "não me convidem porque eu vou lhes dar um motivo de tristeza aguda daqui a pouco tempo". E aceita o refrigerante como quem diz "está bem, vocês que sabem".
E Margarida nem se diga nesse aspecto. Durante mais de 90% do filme está vestida com uma camisola de dormir de cor... branca. Ela vive revestida com a morte do filho. Outras três cenas, avaliadas em conjunto (apesar de não estarem na mesma sequência) evidenciam inclusive que essa depressão dela estava progredindo. No início do filme ela está sentada no vaso sanitário, fumando um cigarro e num banheiro de cor absolutamente... branca. Só um objeto quebra a homogeneidade do branco, é o cabo de um rodo todo vermelho, encostado na parede do boxe do chuveiro.
Em outro momento, ela aparece de novo sentada no mesmo vaso e o rodo não está mais lá. A tristeza cresce e está a ponto de eliminar a personagem. Em outro cena, Margarida está na cama sentada, pensativa, com vozes do passado esparramando-a pelo ambiente e a parede começa a sangrar abundantemente. É o único momento em que o vermelho não representa a alegria jovial, manifestada na rosa, por exemplo. Essas cenas não são gratuitas. O conjunto delas revela, tacitamente, que Margarida já pensava em suicídio - na nossa humilde opinião, é claro.
Essa cena mórbida tem "colegas" em um conjunto que revela uma influência de uma antiga corrente cinematográfica europeia. Se já foi colocado que há um ar meio de neo-realismo italiano, há também, sem dúvida, um quê de Expressionismo Alemão. Nos anos 1920, o cinema alemão primava por temáticas sombrias, histórias tristes, com cenas de acontecimentos meio surreais e obscuros. Ora, é justamente o que acontece com Margarida nos seus momentos de solidão.
Ela chega a ver a sua cozinha se transformar em um lugar recheado de musgo na parede, tomado por uma vegetação sinistra. É bem simbólico. Ela vai dando voltas em torno de si mesma, representando esse circulo fechado de sofrimento e de pensamentos negativos em que ela mesma se encerrou. Parece um filme de terror nesse momentos.Outra hora aterrorizante é quando uma personagem imaginária invade o espaço físico "real" do filme. Parecendo uma deidade da cosmovisão africana, nua careca, como se a morte se aproximasse da personagem sombriamente para leva-la a qualquer momento. Aliás esta presença com a maneira como Violeta invade (praticamente) a casa de Margarida na primeira vez sugerem que a história usa essa presença imaginária.
Violeta não se comporta como uma pessoa real nesses momentos. É como se ela fosse um elemento cognitivo da mente de Margarida forçando a entrada para obriga-la a evoluir do seu luto e voltar a ter alegria de viver. Nesse momento, Violeta coincide com alguma espécie alter ego de Margarida - o que explicaria a atitude entrona de Violeta, que não é condizente com a menina doce e educada que mostrou ser no desenvolvimento da personagem no primeiro ato.
Não admiraria se dissessem que os autores de "Café com Canela" tem o filme "Clube da Luta", do diretor estadunidense David Fincher. Mas voltando ao Expressionismo Alemão do filme, há outras duas cenas que merecem destaque aqui. No momento em que Margarida está sozinha na cozinha, um jogo de câmera cria um efeito visual distorcendo as bordas e dando a sensação de que o lugar está diminuindo de tamanho. O que condiz com a nossa ideia de que a depressão de Margarida progride e a faz ter uma sensação cada vez mais claustrofóbica do mundo.
E a cena em que Ivan descobre a morte do namorado. Depois de descobrir o falecimento, há uma câmera subjetiva que anda pelo chão até chegar no pé de Ivan e olhar para ele. Nesse momento ele entra em contra-plongé (ângulo de baixo para cima usado geralmente para engrandecer aquilo que está sendo enquadrado) e a as quinas da imagem ficam distorcidas, como se estivessem se dobrando. Depois um plano seguinte abre e percebemos que aquele plano com um traveling (movimento de câmera para viajar pelo ambiente) rasteiro era a visão do cachorro de estimação do casal.
Aqui isso também não foi gratuito. Essa distorção das bordas era de utilização comum no Expressionismo Alemão (de acordo com a SBC) e foi usado para mostrar que, o ser humano é a coisa mais importante para o filme (por isso a contra-plongé) mas que, com AQUELE humano, há algo errado - uma emoção mórbida o aflige. É um momento pesado no filme. Essa cena tem um início que é Ivan chegando em casa do seu plantão (vestido de branco) não conseguindo entrar e Violeta acordando para ajudá-lo.
Ela lhe diz que vai dar a volta para tentar chamar o namorado de Ivan pelos fundos. Aí entra mais um plano com traveling, mas o detalhe é que foi feito com câmera na mão. Se percebe isso pela instabilidade da câmera balançando enquanto o deslocamento acontece. Inicialmente, ela é uma câmera subjetiva, mostrando como Violeta está vendo o corredor por onde se desloca. Quando ela chega na porta, a câmera se transmuta para uma câmera de observação, enquadrando Violeta tentando chamar pelo namorado de Ivan.
É intencional! O balanço da câmera gera, toda vez que sai do eixo paralelo em relação ao solo, ângulos holandeses, que são tomadas com a câmera em ângulo torto. Esse ângulo é usado para mostrar que algo está muito errado na cena. É Mise en Scéne antevendo novamente a morte usando, a direção de fotografia par isso. Se você reparar bem, esse efeito te mostra que algo não vai bem com o namorado de Ivan e já te permite deduzir, inclusive, que ele está morto do lado de dentro da casa e por isso não abre a porta para Ivan.
A atitude assustada de Violeta de querer levantar de seu sono para ajudar Ivan, levando seu marido (a contragosto) para isso também são indicativos dessa "coisa errada" que está para acontecer. Belo trabalho de atmosfera "ruim" usando o enquadramento com o recurso da câmera na mão. Outra cena em que a câmera está na mão propositalmente e gerando ângulos holandeses em sequência é na primeira vez que Violeta e Margarida se sentam juntas à mesa. Violeta começa a exigir de Margarida que encare a morte do filho e a supere. Margarida se recusa e se sente desconfortável com a confrontação, tanto que expulsa Violeta de sua casa nesse momento. A câmera balança propositalmente para expressar esse desconforto.
Por fim, um último enquadramento para mostrar o excelente desempenho da Mise en Scéne deste filme é no churrasquinho da laje. Ivan está falando de como conheceu o namorado se lembrando de como era sua vida antes e depois de conhecê-lo. O plano aí é fechado no rosto dele mas não em close up. É um primeiro plano focado nele, mas aberto o suficiente para haver um espaço vazio considerável. Ele está enquadrado à direita e fala como se estivesse dando um depoimento.Ele olha para os lados simulando que está conversando com as demais personagens presentes ao encontro. Quando ele vai se lembrando que o namorado o "deixou" ele olha numa direção contrária ao que é o espaço interno do plano. Essa olhada para fora é similar à usada por Quentin Tarantino no famoso filme Pulp Fiction, na cena em que o assassino Vicent (John Travolta) está no bar com a esposa do chefe e se sente desconfortável. O enquadramento com o personagem focado em um dos cantos do plano e olhando para fora é também um recurso usado para comunicar ao público um desconforto psicológico da personagem.
Mais um momento em que o filme ousa é estabelecendo um nexo direto com o público. Na cena em que Margarida explica para Violeta o que ela acha que é a experiência de ver um filme no cinema e Violeta lhe responde que quando ela era criança e ia ao cinema, ela pensava que os personagens podiam olhar para ela também. E após esse momento, ela olha para a câmera gerando uma janela onde o público existe para o filme.
Fantástico!
Conclusão
O filme peca ao não mostrar uma Margarida um pouco mais resistente à entrada de Violeta em sua casa, que na verdade é a mente dela. Isso tirou um pouco o Timing do desenrolar natural da trama. Margarida não deveria aceitar tão rápido as rosas e colocá-las com carinho pela casa. Não condiz com sua postura fechada a superar seu eterno luto e seguir em frente com a vida.
Mas isso não chega a comprometer o desempenho geral do filme, que é excelente! Se percebe que os autores tem muita referência na cinematografia mundial, e isso fica visível na riqueza com que são trabalhados os planos, movimentos de câmera, ângulos e etc. O filme é de uma comunicação intensa, emocionante e verdadeira. E faz isso fugindo dos extremos, que são muito comuns nas tramas de Hollywood.
Ninguém é moralmente perfeito no filme. Também não há bruxas envenenando a maçã da Branca de Neve. Há seres humanos com suas facetas, suas qualidades e seus enganos. Uma trama do universo afrodescendente do recôncavo baiano, colocando na tela os aspectos sociais e culturais típicos dessas comunidades, sem romantizar excessivamente ou mascarar os aspectos desse universo.
Outro ponto forte é a crítica aos preconceitos da homofobia e do machismo. No mundo do filme, é normal ser homossexual, é normal o usos de drogas leves para a recreação sem que isso torne os usuários criminosos satânicos. E há um empoderamento feminino bastante positivo. É normal as mulheres expressarem sua sexualidade, sair para beber sozinhas em um bar, mesmo comprometidas. E normal que assumam o protagonismo no meio social em que vivem. Todas as ações significativas da narrativa partem de tem fim nas mulheres.Se o milho esbranquiçado é um clichê para o cinema, podemos dizer que "Café com Canela" combina com pipoca. E muito!
Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.
Filme incrível e essa roda do Devir on ta Maravilhosa
ResponderExcluirFilme fantástico mesmo, Tom! Concordo com vc! Espero poder atrair um público maior para o Devir Cinema Virtual para melhorarmos isso mais ainda...
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