sábado, 28 de novembro de 2020

A "ÚLTIMA ABOLIÇÃO" É UM PRETÉRITO SITUADO NO FUTURO!

O Cine Clube Devir Cinema encerrou ontem a parte do Devir Negro de sua Mostra Virtual em grande estilo. Após uma sequência de três semanas seguidas com filmes de narrativa ficcional, com "Do the Right Thing" de Spike Lee, "Café com Canela" de Glenda Nicácio e Ari Rosa e "Fronteiras" de Apolline Traoré, foi a vez de um documentário ganhar o centro das discussões. Dirigido por Alice Gomes, "A Última Abolição" foi o encaixe perfeito com as discussões geradas pelos filmes anteriores e elevou o patamar da discussão trabalhando reflexões em cima da imagem do real.

Esta crítica é a visão do jornalista a serviço do Cine Clube Devir, Paolo Gutiérrez, e não se pretende uma verdade absoluta sobre seu desempenho narrativo ou sobre os aspectos técnicos em sua pretensa função aqui abordada. O conceito de "Devir" é usado aqui exatamente para fomentar a transformação constante do pensamento, o que nos leva a evitar conceitos fechados com pretensão de ideias perfeitas. 

Assim convidamos todos para discutir sobre esta presente crítica, com o aviso importante de que se você está lendo estas linhas e ainda não assistiu ao documentário, veja-o [Clicando aqui!] antes de continuar. Nele você se dará conta como são tão vivos ainda hoje os eventos de um tempo que deveria ser tão distante, mas parece que estamos falando da semana passada.

A temporalidade em fusão de passado e presente

Usando essa premissa de "brincar" com as noções do tempo que o audiovisual permite ao gosto da criatividade de quem elabora produtos finais para as telas, o roteiro de "A Última Abolição" obedece a um esquema bem simples. Por isso mesmo, a mensagem transmitida é de uma fluidez aonde a argúcia dos comentários expostos - tanto de maneira textual como de maneira imagética - constituem uma mensagem única, ininterrupta, transmitida de forma leve, objetiva e eficiente.

Os fatos discutidos ganham o contorno de um olhar científico nas interpretações, porém, ao mesmo tempo desprovidos de limitantes positivistas. Ou seja, não há conceitos fechados e sim discussões em torno da historiografia que envolve o evento talvez mais significante da constituição do Brasil como o conhecemos hoje, que é a abolição da escravatura.          

Assim, temos os depoimentos de intelectuais especialistas na análise desse momento histórico do país, colocando as influências daqueles eventos nos dias de hoje (um evidente link temporal). Eles estão intercalados com montagens sendo realizadas na tela justapondo desenhos ilustrativos da época da escravidão. Um terceiro momento é a exposição de documentos, constituindo um bloco historiográfico com função de suporte factual às análises emitidas pelos intelectuais. Também dados sobre a escravidão são distribuídos por toda a duração do filme documental. 

Frases importantes e máximas com as ideias centrais trabalhadas pelo documentário também fazem parte destes momentos. A menos que o espectador seja adverso a usar seu cérebro de forma crítica, ou que discorde tanto das abordagens exibidas por "A Última Abolição" a ponto de criar repúdio ao conteúdo, não dá para se cansar com a sintaxe trabalhada pelo roteiro. Não dá para se aborrecer com este produto final, achá-lo enfadonho ou qualquer coisa do tipo. A montagem do documentário é muito bem feita, sem firulas, de maneira objetiva. 

As declarações de quem dá os depoimentos e os planos são trabalhados sem excessos em nenhuma extremidade, com um timing perfeito - nenhum corte ou fala demora mais ou menos do que deveria, dando um ritmo perfeito ao produto final do início ao fim. A parte sonora, restrita à fala dos especialistas em História e atualidades sociológicas brasileiras intercalados com o batuque de instrumentos percussivos cujo som remete a ritos tribais. A Trilha Musical possui cânticos de fundo emocional remetendo a necessidade de liberdade. Está ai trabalhado pelo roteiro o clima de ancestralidade dos conhecimentos transmitidos pelos intelectuais e pela discussão geral do documentário.

Pegando emprestado de Jürgen Habermas a Teoria da Ação Comunicativa, avaliamos que toda comunicação possui 4 funções básicas: falamos em ação dramatúrgica, o fingimento para iludir terceiros, a ação teleológica, orientada para um fim, a ação normativa, estipulação de regras, e a ação comunicativa, de transmitir algo por meio de um discurso com pretensão de verdade. Nos filmes de diegese (narrativa) ficional exibidos pelo Devir Cinema até antes deste documentário agora em apreciação, é evidente uma ação dramatúrgica à frente das demais intenções.

O cinema surge com os irmãos Lumiere na França, no início do século XIX, com o intuito de proporcionar imagens em movimento que sirvam de captação científica da realidade. Em seguida, Georges Mélies, tido pelo membro-fundador da Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), Bruno Albuquerque, como o verdadeiro "pai" do cinema, profundo conhecedor de dramaturgia, vai aplicar uma função artística ao cinema, com imagens "artificialmente arranjadas" e uso de atores em cena - é a primeira linha do cinema europeu trazendo o teatro para a tela.

Por isso esta crítica coloca o filme ficcional como uma Ação Dramatúrgica no centro de sua pretensão de verdade. Sabemos que se trata de uma ficção, mas os atores precisam nos convencer em vários níveis que aquela ficção é uma realidade a parte. Precisam carregar a ficção com uma roupagem de verossímil. O documentário não. Claro que há uma ação dramatúrgica, já que o ser humano não se comporta do mesmo modo quando sabe que está sendo filmado. Ele passa a querer aparentar algo diferente do que é para a câmera.

Mas esta se limita a uma ação de fundo psicológico inconsciente. O discurso de um documentário é uma pretensão de verossímil acima, uma pretensão de realidade - muito embora a subjetividade desse discurso sempre deixará essa "realidade" num status de relativa, abrindo sempre caminho para outras leituras. Mas os especialistas que estão dando seus depoimentos possuem historiografias e leituras extremamente válidas para sustentar essa pretensão de realidade com boas (excelentes) razões.

Por ai, vemos que o roteiro de "A Última Abolição" constrói um discurso de caráter científico social - sem o positivismo que o termo 'científico' ai pode acarretar - mas muito bem amparado em dados, fatos e documentos. É um filme mais próximo do ideal dos irmãos Lumiere, do início ao fim uma construção de conhecimento onde até o seu caráter teleológico, seu movimento orientado para um fim, é transmitir uma informação importante para o meio social do país.

Uma ação comunicativa nos informando que a escravidão no Brasil não acabou. O presente não superou o passado, no que tange a esse importante tema da História.

Direção de arte e de fotografia construindo o discurso

Assim já percebemos no documentário aqui apreciado esse discurso com pretensão de uma verdade científica. Seu roteiro está voltado a comunicar para a sociedade a herança de uma escravidão que nunca foi superada no território brasileiro. Pois bem, é complicado falar de Mise en Scéne em um documentário. Como dissemos, a função da linguagem audiovisual aqui não carrega uma necessidade de fingimento capaz de produzir o verossímil. 'Mise en Scéne' em um termo do francês que o cinema apropriou do teatro e que significa "tudo o que está em cena".

Não estamos em um derivado dramaturgo apropriado pelo audiovisual da sétima arte. Estamos em um registro com pretensão de realidade objetiva, subjetivamente colocada com bons argumentos - uma "verdade" dotada de boas razões. Não é, para esta crítica, conveniente falarmos de Mise en Scéne, nem para este nem para qualquer documentário, em princípio. Mas elementos do cinema estão sim em "A Última Abolição" no que diz respeito à construção narrativa dessa ação comunicativa.

O destaque primeiro é para a Direção de Arte - aquela que cuida de todas as "coisas" que vemos na tela, os objetos e os cenários. Os cenários não foram feitos a la Mélies, artificialmente arranjados. Eles já existiam. Talvez alguma limpeza aqui, alguns objetos de fundo deslocados acolá. Mas a seleção das locações com certeza não foi porque Alice Gomes achou bonitinho. Os panos de fundo dos depoimentos são fundamentais para transmitir aquilo que o documentário pretende comunicar.

Há especialistas no assunto "escravidão" dando os seus pontos de vista por toda a filmagem. Esses pontos de vista são congruentes para a ideia de que os negros no Brasil sofreram abusos em seus direitos humanos e que a organização social do país resultante na abolição "oficial" da escravatura. Essas pessoas dando depoimentos são de dois tipos básicos. O negros e os não-negros. Quase todos os não-negros estão em um pano de fundo mais suave, geralmente cercados por um ambiente que chama a 'intelectualidade'. O cenário mais comum é com livros ao fundo. Uma dessas não-negras está, inclusive, sendo entrevistada em uma biblioteca.

Os especialistas negros estão quase todos em um pano de fundo que nos remete às condições que os negros sofriam quando a escravidão era oficial. São galpões escuros com uma arquitetura que lembra às imagens dos desenhos dos livros dos locais usados como senzalas. Uma imagem recorrente é a dos muros velhos ou em ruínas. Uma especialista negra está sempre em um lugar aonde se vê pneus velhos e uma parede grafitada. Na opinião desta crítica, os cenários comunicam que os negros ocupam lugares marginalizados. Lugares de ruína, remetendo ao esquecimento social, à desvantagem.

Contrário a esse "esquecimento", os textos de suas falas, de seus depoimentos, invocam a memória dos eventos da escravidão e como ela influencia até hoje. Esse cenários nos fazem sentir que aqueles fatos ocorridos séculos atrás estão vivos hoje, e influenciam a vida dos negros de hoje. É como se o tempo tivesse passado, mas não no aspecto da escravidão, que até hoje estende sua influência e prolonga a iniquidade com que as populações negras são tratadas no Brasil desde sempre.

Os especialistas não-negros estão em ambientes mais "confortáveis". Mas estão falando como denúncia a essa realidade. São não-negros caudatários da causa dos negros. Favoráveis a um país mais justo. Assim, a Direção de Arte transmite subliminarmente, secundariamente (mas não de forma menos importante) que temos dois pontos de vista básicos no documentários. O dos especialistas que conhecem a injustiça social oriunda de uma lógica escravagista e o dos especialistas que, além de conhecê-la, vivem (literalmente) na pele essa injustiça.

Na parte do figurino, vê-se as mulheres paramentadas com vestimentas normais, mas os adereços - brincos, colares e pulseiras - todos remetendo à negritude, à afro-descendência. Há uma não-negra em cenário com os muro velho atrás e usando um colar parecido com adereços típicos de religiões com cosmovisão africana. Talvez, aqui é mostrada a miscigenação cultural. E uma quebra visual de limites entre os especialistas negros e não-negros. Os cabelos das mulheres também estão de acordo com a valorização da negritude. As negras os usam sem a lógica do "embranqueamento" de cabelos alisados, por exemplo.

Talvez ai houve orientação da produção, "vista-se preferencialmente assim" ou "use adereços assados se possível". Um princípio de caráter dramatúrgico na ação comunicativa? Sim, mas não de maneira a falsear a realidade, na medida que, com certeza os figurinos podem ter sido direcionados, mas são visuais que essas pessoas usam em algum momento de suas rotinas. 

Direção de fotografia sutil, mas técnica

Se a Direção de Arte usa cenários e adereços para nos transportar a um tempo do Brasil escravocrata, se usa para linkar esse período aos dias de hoje, a Direção de Fotografia não fugiu dessa raia. Os desenhos e a exibição de documentos, como recortes de jornais da época em questão, constituem o momento em que a psicologia das cores entra em cena, No universo imagético estabelecido pelo documentário há uma cor predominante. 

É um roxo mais próximo do vermelho que do azul, o que o deixa levemente deslocado de uma classificação de "cor fria", como é estabelecido pela técnica cinematográfica. No entanto, essa cor é usada geralmente para acompanhar cenas bizarras, muito comum em cenas de filmes de terror - veja que no Halloween é uma cor comumente associada a vampiros e bruxas, porém numa tonalidade mais próxima do azul, por tanto, mais "fria".

Na primeira imagem do documentário, no primeiro plano, esse roxo é usado num mapa mundi, numa animação que vai traçando linhas em várias partes do mundo a partir da África. Já fica muito claro já de saída que essa cor representa o próprio estado de escravidão. Vemos que quase todas as vezes que os desenhos são montados essa cor aparece envolvendo as figuras e as personagens representadas, mostrando que estão imersas na lógica escravagista. Assim também como os documentos. As frases de efeito e as máximas que povoam o documentário durante sua extensão, usam essa mesma cor como pano de fundo.

O título do documentário intercala o roxo com a cor negra. Não há como pensarmos, ao ver desta crítica, esta coloração predominante em todo o filme com outra conotação - não foi porque Alice Gomes achou lindo, não foi à toa. Inclusive, na parte inicial do documentário, num dos muitos momentos que as imagens são montadas enquanto algum especialista fala em "off" (em Comunicação, é quando há uma voz mas não se mostra quem está falando, "cobrindo" com imagens geralmente associadas àquilo que esta sendo dito), há uma foto de um instrumento de tortura que exemplifica nosso ponto de vista aqui.

É uma tábua em que se prendem as mãos e a cabeça da pessoa, que é obrigada a ficar na mesma posição o tempo todo, com os joelhos no chão e a bunda para cima. Enquanto o especialista fala, o instrumento é coberto pela animação com uma cor. Nem conseguimos adivinhar que foi o roxo característico do documentário de tão óbvio que é o seu significado nesta obra. Essa é a parte imagética semi estática do documentário. Na parte "humana" do doc, a iluminação tem um trabalho voltado para deixar integral todas as expressões de quem fala. Os rostos das pessoas dando depoimento tem luz principal e de preenchimento. Em nenhum momento alguma sombra se sobrepõe aos traços faciais dos especialistas.

A outra cor que tem função de transmitir ideias é um bege escuro, fazendo contraste com esse roxo. O significado dele pode ser a representação do próprio negro, visto que nas montagens de fotos e desenhos em que o documentário fala da marcha no Rio de Janeiro contra o mito da democracia racial no Brasil, os manifestantes são cobertos pela arte montada com essa cor. Claro que não há certeza absoluta sobre isso, mas os indícios audiovisuais apontam para esse significado.

Mas é nos enquadramentos que esta crítica considera o melhor desempenho da Direção de Fotografia. Os planos obedecem ao esquema básico de todo depoimento. Sempre a pessoa está sentada (por tanto à vontade para uma longa fala) é enquadrada mais próxima a um dos cantos do plano (da tela), de um jeito que seu olhar enquanto fala esteja sempre direcionado para o lado vazio do plano - para o lado interior do plano. Em algumas situações poucas, o especialista enquadrado está olhando para fora do plano, o que o cérebro humano reconhece como uma imagem que gera um pequeno desconforto.

Olhar para fora do plano para expressar desconforto
O principal desses poucos momentos acontece no início do documentário. Quando o especialista fala que os negros vinham para o Brasil em condições sub-humanas, convivendo com urina, fezes, cadáveres entrando em decomposição. O desconforto que essas informações geram foram expressas imageticamente por esse recurso do olhar para o lado externo do plano. Dificilmente não foi com essa intenção. 

Os enquadramentos quando se aproximam do primeiro plano, com a cara do depoente quase em close up (somente a face no quadro do plano) usam recurso de colocar a cabeça da pessoa com uma parte fora do plano. Isso acontece mais com os especialistas negros, mas chega a acontecer com alguns não-negros também. Em cinema de diegese ficcional, isso já foi usado, segundo a SBC, no filme Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, para manifestar extrema superioridade do personagem de Samuel L. Jackson perante outros em uma das cenas tensas do filme.

Aqui o uso parece ser outro. O documentário tem uma pegada bem humana, se preocupa em destacar as expressões faciais de quem fala. A iluminação preenchida e com luzes suaves (que geram menos sombra) é um recurso. O outro pode ser esse de aproximar o primeiro plano ao máximo, não importando se o depoente terá uma parte da cabeça fora do quadro. Outro significado talvez fosse a grandeza do ser humano, que não caberia no plano, mas essa hipótese parece para esta crítica menos provável.

Há também um movimento curioso de intercalação dos planos. Ou as pessoas são enquadradas em um plano mais aberto aonde podemos vê-las sentadas, às vezes em um plano mais fechado, um primeiro plano, bem próximo à cara. No plano mais fechado, o fundo está sempre desfocado, havendo destaque total para as faces de quem fala. Quando o plano abre, o cenário de fundo se revela. Mas parece que este movimento de planos obedece ao que está sendo dito nos depoimentos. Quando o especialista está falando de um aspecto humano, de pessoas, o plano costuma ser o mais fechado.


Quando a mesma pessoa vai para o momento da fala em que vai se referir a um estado de "lugar" de pessoas ou de coisas ou de conceitos, o plano abre, destacando o lugar onde o depoente está. Não é uma regra rígida, visto que a diretora não pode controlar tudo o que os especialistas dizem. Mas uma observação mais apurada mostra que há alguma relação entre os planos e o tema da fala das pessoas. Claro que é um método de descansar as vistas e a mente de quem está vendo. Deixar a pessoa sempre no mesmo plano poderia gerar uma sensação de cansaço visual, exaurindo mais facilmente o cérebro de quem assiste ao documentário em suas pouco mais de 1h30min.

Isso somado ao que dissemos sobre os especialistas negros quase sempre em cenários que remetem à escravidão oficial do negro no passado ou à exclusão decorrente dessa escravidão nos dias de hoje, leva a mensagens imagéticas que corroboram a mensagem do texto daquilo que está sendo dito. Uma professora falando do lugar do negro na sociedade de hoje e o plano abre para ela num lugar escuro, de tijolos velhos, que parece ter sido usado como senzala há séculos atrás, vai ser sempre sugestivo e a mensagem sai do patamar meramente falado, meramente textual, e ganha o contorno audiovisual. Fica com isso, mais poderosa como ação comunicativa, sem dúvida.

O lado em que os especialistas estão enquadrados nos planos muda constantemente - se num momento tal pessoa falava estava mais à direita, a pessoa seguinte de repente está mais à esquerda. A própria pessoa que foi enquadrada mais para um lado, em outro momento vai aparecer mais para o lado oposto em outro momento. Pode ser uma maneira de comunicar de forma imagética ao espectador que a ideia veiculada pelo documentário se verifica e se fortalece em diferentes pontos de vista - em diferentes ângulos.

Há um momento em que o enquadramento muda num mesmo plano. A câmera não está estável, o que pode ser proposital também para mostrar que a informação veiculada pelo texto gera desconforto. O especialista está falando desde um canto mais à direita do plano. Ele vai dizendo que o ponto de vista do negro foi se ajustando à sua condição de opressão (não exatamente isso, mas nesse sentido) e a câmera vai ajustando o depoente para deixá-lo enquadrado no centro do plano. Imagem trabalhando para corroborar o texto e torná-lo "audiovisulamente" trabalhado, por assim dizer.

O momento mais marcante dessa jogatina tácita de planos é quando, próximo ao final, uma especialista diz algo como "o negro ajudou a construir" esta sociedade, e o plano está aberto. Ela está sempre em um lugar onde ao fundo há paredes em ruínas, com uma delas pichada com spray preto, sem um desenho ou palavra preferida. Para esta crítica, o documentário expressou ali que o negro edificou com seus suor e sangue a sociedade brasileira e esta lhe dá a ruína em troco.                     

O protagonista do som é o conteúdo do que está sendo dito 

A trilha sonora do documentário "A Última Abolição", como citamos brevemente ao falar do desempenho do roteiro, está focada na fala dos especialistas. E não podia ser diferente. Não há riqueza sonora a ser explorada para além disso quando a obra cinematográfica não é uma diegese ficcional e sim um documentário. A trilha musical é simples, tem uma música fazendo um fundo tribal em vários momentos, e alguma coisa cantada em poucos momentos.

Da edição do som, há vários J Cuts (lê-se "jei cots" em inglês), que é quando o som do plano seguinte já aparece no plano atual. Isso é usado quando há as montagens dos desenhos nas imagens e já aparece a voz de algum especialista, do plano seguinte, sem mudar do plano das partes de montagens de imagens estáticas. É comum esse recurso em documentários, onde prevalece o depoimento.

Um documentário tem uma função primeira comunicativa, o que coloca o texto do que está sendo dito em primeiro lugar de importância ao falarmos da trilha sonora. A mensagem é principalmente veiculada por esse texto, um texto espontâneo exclusivamente oral - não há uma fala escrita decorada pelos depoentes, como é o caso dos filmes ficcionais, aonde as falas estão primeiramente colocadas em um papel escrito, decoradas pelos atores, que, por meio de sua capacidade dramatúrgica, iludem o público de que se trata de falas naturais, exclusivamente orais e espontâneas, no universo do filme.

E "A Última Abolição" tem muito a comunicar para a sociedade! As falas nos revelam informações que passam fora do conhecimento da maioria das novas gerações. As reais condições das populações negras aqui no Brasil na época da escravidão, no momento imediatamente posterior à abolição oficial e nos dias de hoje. Achamos que sabemos como são as coisas, mas o documentário nos mostra - por áudio - que não.

É dito, por exemplo, que ao se proclamar oficialmente a abolição, há registros da polícia prender mulheres só porque estas estavam comemorando o fim oficial da escravidão no Brasil (!!!!!). Os códigos penais, que imediatamente após decretada a lei Áurea correram para criminalizar todas as manifestações culturais, artísticas e religiosas ligadas ao universo afrodescendente. Rituais da cosmovisão africana, costumes ligados à população negra no dia a dia e até a própria capoeira foram considerados crimes passíveis de prisão (!!!!!!!).

Toda a movimentação jurídica que foi feita para que os negros não pudessem reivindicar reparações por terem tido seus direitos humanos suprimidos. Todo o jogo de forças desprendido para sufocar aqueles que queriam um fim de escravidão com assistência social e econômica para os ex-escravos e seus filhos. Como as personagens realmente importantes foram suprimidas dos registros históricos e de sua importância no movimento que culminou com a abolição oficial da escravidão. Aliás, até hoje os livros didáticos citam a Princesa Isabel como a principal figura da abolição por ter assinado a Lei Áurea, dando uma imagem de "concessão da elite branca aos negros" à abolição - uma grande mentira histórica reproduzida como verdade por gerações e mais gerações.

Qual a importância disso para a sociedade? Aqui o jornalista responsável por esta crítica dá o seu depoimento pessoal sobre isso. Além da crítica ao cinema, faço também crônica esportiva num blog pessoal - o "Rei da Bahia FC". Costumo sempre me ater à parte meramente técnica da disputa, principalmente em jogos de futebol e em lutas de MMA. Em 2013, acontecia no Brasil a Copa das Confederações, evento que era realizado como teste para a Copa do Mundo - a que no ano seguinte o Brasil foi massacrado por 7 a 1 pela Alemanha, e matando de vez o "mito da superioridade natural do futebol brasileiro".

Nos jogos da Copa das Confederações precisei que minha mãe me atentasse para um fato degradante para o nosso país. Praticamente não havia negros entre os torcedores presentes aos estádios durante os jogos. Os únicos que identificávamos quando as câmeras faziam o giro de imagens nas arquibancadas eram os parentes dos jogadores. Até em Salvador, na Arena Fonte Nova, numa cidade que tem o título de ser a maior do mundo com percentual de população negra fora da África, identificamos no mar de pessoas UMA única mulher negra - e ela estava em companhia do namorado branco.

Como uma pessoa que estudou história, que conhece o preconceito e o racismo, como um jornalista dotado de senso crítico como me considero ser não me dei conta desse Apartheid  escancarado bem na frente dos meus olhos? É porque não tenho o costume de enxergar a questão tão profundamente como a mensagem do documentário "A Última Abolição" nos comunica em seu produto final. Porque não conheço DE VERDADE a história sobre a "abolição" da escravatura como deveria conhecer. 

Como todos deveriam conhecer!

Conclusões

Um documentário de linguagem simples e de comunicação cientificamente poderosa. As imagens são muito bem trabalhadas para transmitir as ideias em debate no produto final. A única coisa que incomoda, que faz um ruido silencioso, é que a voz do negro excluído da educação, iletrado por discriminação sócio-econômica, não aparece em nenhum momento. 

Todas as vozes são intelectualizadas, pelo menos ao nível de pronunciar um português limpo, do ponto de vista da norma culta. É verdade que isso quebraria o ritmo desse discurso com pretensão de validez amparada em boas razões - até científicas. Mas era um desafio que valia a pena Alice Gomes se propor.

Mas o que valia a pena mesmo era difundir esse documentário aos quatro ventos. Suas informações e pontos de vista são algo muito necessário para que tenhamos a chance de entender melhor nossas raízes enquanto país e evoluirmos para um meio social mais justo de verdade. Muitos pensam por ai que o negro na favela tem chances iguais a um cidadão de classe média branca. É verdade!

O Brasil vive nessa ilusão hipócrita até hoje. Achamos que o jovem negro na favela merece ser morto pela polícia porque é bandido. Ainda que seja, por que é bandido? Porque há uma lógica de uma abolição da escravidão que o colocou nessa condição. Parece chover no molhado dizermos isso, mas é verdade. Não terminamos de entender isso até os dias atuais.

E nessa falsa democracia racial da qual nos gabamos, nosso pensamento permanece atrasado e medíocre. Porque a abolição da "escravidão" nunca aconteceu para além da pluma chique da princesinha que em suas vestes nobres, comida e educação garantidas, assinando um pedaço de papel cuja função histórica de verdade não foi libertar ninguém - foi nos mergulhar em uma mentira narcisista e desumana.

A "Última Abolição" é um evento do passado que nunca aconteceu - não de verdade, na plenitude que deveria ter acontecido. Precisamos fazê-lo acontecer no futuro, desde já, todos os dias e é essa, na opinião desta crítica, a mensagem audiovisual muito bem comunicada por esta (por enquanto) silenciada obra de arte do cinema do real.

Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.                        

                 

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