segunda-feira, 30 de novembro de 2020

DEVIR CINEMA DISCUTE PANDEMIA COM OBRA DE SARAMAGO NAS TELAS!



O Cinema nasceu de uma transposição de vários meios de expressão conjugados em uma imagem em movimento, no início do século XX. Uma desses meios absorvidos pela 7ª arte foi a literatura. Desde a concepção do cinema ficcional pelo francês Georges Mélies, há cerca de cem anos atrás, o cinema adaptou várias obras de escritores para as salas de projeção e, agora, para os lares de todo o mundo. É a vez do Cine Clube Devir Cinema explorar esse universo híbrido entre arte escrita e audiovisual.  

Dando sequência à Mostra Virtual do Devir, o próximo filme em debate, nesta próxima sexta (04/12), às 20h (Brasília), é a adaptação do famoso romance de José Saramago, o "Ensaio Sobre a Cegueira", filme dirigido por Fernando Meireles. O filme é um gatilho para refletir sobre os momentos de pandemia pelos quais o planeta todo está passando, um momento (sem dúvida, histórico) delicado na vida de todos os seres humanos.   

O debate terá a presença ilustre do professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Eder Amaral e Silva, e será mediado pela realizadora do Cine Clube Devir Cinema e professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), Nedelka Palma.

O Cine Clube Devir Cinema é um projeto de extensão da UFOB. Participantes na Mostra Virtual ganham certificado válido para currículos acadêmicos e no geral. Para garantir o certificado é necessário se inscrever na Mostra, porém a participação é aberta a todo público, mesmo sem inscrição.

Confira o nosso calendário de debates e o passo passo para se inscrever e participar do debate. Participe conosco dessa transformação do pensamento por meio da 7ª arte:   

CALENDÁRIO DA MOSTRA VIRTUAL "DEVIR NEGRO"

06/11/2020: "Faça a Coisa Certa" (1989). Direção: Spike Lee

13/11/2020: "Café com Canela" (2017). Direção: Glenda Nicácio & Ary Rosa

20/11/2020: "Fronteiras" (2017). Direção: Apolline Traoré

27/11/2020: "A Última Abolição" (2017). Direção: Alice Gomes

04/12/2020: "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008). Direção: Fernando Meirelles

11/12/2020: "O Dilema das Redes" (2020). Direção: Jeff Orlowski

18/12/2020: Conversa com o público para sugestões, críticas, continuidades.


PASSO A PASSO PARA INSCRIÇÕES, DEGUSTAÇÃO DO FILME E PARTICIPAÇÃO NO DEBATE:

1º PASSO - É necessário realizar, antes de tudo, a sua inscrição na Mostra Virtual para garantir seu certificado [Clicando aqui!].  

2º PASSO - Baixar o filme e assisti-lo previamente! O link onde pode ser encontrado já está disponível! [Clique aqui para baixar o filme!] É necessário baixar também a legenda [Clicando aqui!]. Para ativá-la é necessário salvar os arquivos do filme e da legenda na mesma pasta, lado a lado. Assim, ao dar o play no programa usado para rodar o filme, a tradução escrita entrará automaticamente. 

3º PASSO - Para participar do debate sobre o filme, que é o principal momento de todo Cine Clube, você precisa acessar a sala do Google Meet que reservamos para esse fim. É necessário ter o aplicativo baixado. Se você ainda não o possui, também disponibilizamos o link [Clique aqui para baixar o aplicativo!]. Baixado o aplicativo, basta acessar a sala de reunião no dia e horário especificado - sexta feira 20 às 20h (Brasília) - e participar! [Clique aqui para acessar a sala de reunião!]

4º PASSO - Divirta-se transformando e enriquecendo seu pensamento através do cinema conosco! 

Maiores esclarecimentos e orientações pelo e-mail devircinema@gmail.com 

sábado, 28 de novembro de 2020

A "ÚLTIMA ABOLIÇÃO" É UM PRETÉRITO SITUADO NO FUTURO!

O Cine Clube Devir Cinema encerrou ontem a parte do Devir Negro de sua Mostra Virtual em grande estilo. Após uma sequência de três semanas seguidas com filmes de narrativa ficcional, com "Do the Right Thing" de Spike Lee, "Café com Canela" de Glenda Nicácio e Ari Rosa e "Fronteiras" de Apolline Traoré, foi a vez de um documentário ganhar o centro das discussões. Dirigido por Alice Gomes, "A Última Abolição" foi o encaixe perfeito com as discussões geradas pelos filmes anteriores e elevou o patamar da discussão trabalhando reflexões em cima da imagem do real.

Esta crítica é a visão do jornalista a serviço do Cine Clube Devir, Paolo Gutiérrez, e não se pretende uma verdade absoluta sobre seu desempenho narrativo ou sobre os aspectos técnicos em sua pretensa função aqui abordada. O conceito de "Devir" é usado aqui exatamente para fomentar a transformação constante do pensamento, o que nos leva a evitar conceitos fechados com pretensão de ideias perfeitas. 

Assim convidamos todos para discutir sobre esta presente crítica, com o aviso importante de que se você está lendo estas linhas e ainda não assistiu ao documentário, veja-o [Clicando aqui!] antes de continuar. Nele você se dará conta como são tão vivos ainda hoje os eventos de um tempo que deveria ser tão distante, mas parece que estamos falando da semana passada.

A temporalidade em fusão de passado e presente

Usando essa premissa de "brincar" com as noções do tempo que o audiovisual permite ao gosto da criatividade de quem elabora produtos finais para as telas, o roteiro de "A Última Abolição" obedece a um esquema bem simples. Por isso mesmo, a mensagem transmitida é de uma fluidez aonde a argúcia dos comentários expostos - tanto de maneira textual como de maneira imagética - constituem uma mensagem única, ininterrupta, transmitida de forma leve, objetiva e eficiente.

Os fatos discutidos ganham o contorno de um olhar científico nas interpretações, porém, ao mesmo tempo desprovidos de limitantes positivistas. Ou seja, não há conceitos fechados e sim discussões em torno da historiografia que envolve o evento talvez mais significante da constituição do Brasil como o conhecemos hoje, que é a abolição da escravatura.          

Assim, temos os depoimentos de intelectuais especialistas na análise desse momento histórico do país, colocando as influências daqueles eventos nos dias de hoje (um evidente link temporal). Eles estão intercalados com montagens sendo realizadas na tela justapondo desenhos ilustrativos da época da escravidão. Um terceiro momento é a exposição de documentos, constituindo um bloco historiográfico com função de suporte factual às análises emitidas pelos intelectuais. Também dados sobre a escravidão são distribuídos por toda a duração do filme documental. 

Frases importantes e máximas com as ideias centrais trabalhadas pelo documentário também fazem parte destes momentos. A menos que o espectador seja adverso a usar seu cérebro de forma crítica, ou que discorde tanto das abordagens exibidas por "A Última Abolição" a ponto de criar repúdio ao conteúdo, não dá para se cansar com a sintaxe trabalhada pelo roteiro. Não dá para se aborrecer com este produto final, achá-lo enfadonho ou qualquer coisa do tipo. A montagem do documentário é muito bem feita, sem firulas, de maneira objetiva. 

As declarações de quem dá os depoimentos e os planos são trabalhados sem excessos em nenhuma extremidade, com um timing perfeito - nenhum corte ou fala demora mais ou menos do que deveria, dando um ritmo perfeito ao produto final do início ao fim. A parte sonora, restrita à fala dos especialistas em História e atualidades sociológicas brasileiras intercalados com o batuque de instrumentos percussivos cujo som remete a ritos tribais. A Trilha Musical possui cânticos de fundo emocional remetendo a necessidade de liberdade. Está ai trabalhado pelo roteiro o clima de ancestralidade dos conhecimentos transmitidos pelos intelectuais e pela discussão geral do documentário.

Pegando emprestado de Jürgen Habermas a Teoria da Ação Comunicativa, avaliamos que toda comunicação possui 4 funções básicas: falamos em ação dramatúrgica, o fingimento para iludir terceiros, a ação teleológica, orientada para um fim, a ação normativa, estipulação de regras, e a ação comunicativa, de transmitir algo por meio de um discurso com pretensão de verdade. Nos filmes de diegese (narrativa) ficional exibidos pelo Devir Cinema até antes deste documentário agora em apreciação, é evidente uma ação dramatúrgica à frente das demais intenções.

O cinema surge com os irmãos Lumiere na França, no início do século XIX, com o intuito de proporcionar imagens em movimento que sirvam de captação científica da realidade. Em seguida, Georges Mélies, tido pelo membro-fundador da Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), Bruno Albuquerque, como o verdadeiro "pai" do cinema, profundo conhecedor de dramaturgia, vai aplicar uma função artística ao cinema, com imagens "artificialmente arranjadas" e uso de atores em cena - é a primeira linha do cinema europeu trazendo o teatro para a tela.

Por isso esta crítica coloca o filme ficcional como uma Ação Dramatúrgica no centro de sua pretensão de verdade. Sabemos que se trata de uma ficção, mas os atores precisam nos convencer em vários níveis que aquela ficção é uma realidade a parte. Precisam carregar a ficção com uma roupagem de verossímil. O documentário não. Claro que há uma ação dramatúrgica, já que o ser humano não se comporta do mesmo modo quando sabe que está sendo filmado. Ele passa a querer aparentar algo diferente do que é para a câmera.

Mas esta se limita a uma ação de fundo psicológico inconsciente. O discurso de um documentário é uma pretensão de verossímil acima, uma pretensão de realidade - muito embora a subjetividade desse discurso sempre deixará essa "realidade" num status de relativa, abrindo sempre caminho para outras leituras. Mas os especialistas que estão dando seus depoimentos possuem historiografias e leituras extremamente válidas para sustentar essa pretensão de realidade com boas (excelentes) razões.

Por ai, vemos que o roteiro de "A Última Abolição" constrói um discurso de caráter científico social - sem o positivismo que o termo 'científico' ai pode acarretar - mas muito bem amparado em dados, fatos e documentos. É um filme mais próximo do ideal dos irmãos Lumiere, do início ao fim uma construção de conhecimento onde até o seu caráter teleológico, seu movimento orientado para um fim, é transmitir uma informação importante para o meio social do país.

Uma ação comunicativa nos informando que a escravidão no Brasil não acabou. O presente não superou o passado, no que tange a esse importante tema da História.

Direção de arte e de fotografia construindo o discurso

Assim já percebemos no documentário aqui apreciado esse discurso com pretensão de uma verdade científica. Seu roteiro está voltado a comunicar para a sociedade a herança de uma escravidão que nunca foi superada no território brasileiro. Pois bem, é complicado falar de Mise en Scéne em um documentário. Como dissemos, a função da linguagem audiovisual aqui não carrega uma necessidade de fingimento capaz de produzir o verossímil. 'Mise en Scéne' em um termo do francês que o cinema apropriou do teatro e que significa "tudo o que está em cena".

Não estamos em um derivado dramaturgo apropriado pelo audiovisual da sétima arte. Estamos em um registro com pretensão de realidade objetiva, subjetivamente colocada com bons argumentos - uma "verdade" dotada de boas razões. Não é, para esta crítica, conveniente falarmos de Mise en Scéne, nem para este nem para qualquer documentário, em princípio. Mas elementos do cinema estão sim em "A Última Abolição" no que diz respeito à construção narrativa dessa ação comunicativa.

O destaque primeiro é para a Direção de Arte - aquela que cuida de todas as "coisas" que vemos na tela, os objetos e os cenários. Os cenários não foram feitos a la Mélies, artificialmente arranjados. Eles já existiam. Talvez alguma limpeza aqui, alguns objetos de fundo deslocados acolá. Mas a seleção das locações com certeza não foi porque Alice Gomes achou bonitinho. Os panos de fundo dos depoimentos são fundamentais para transmitir aquilo que o documentário pretende comunicar.

Há especialistas no assunto "escravidão" dando os seus pontos de vista por toda a filmagem. Esses pontos de vista são congruentes para a ideia de que os negros no Brasil sofreram abusos em seus direitos humanos e que a organização social do país resultante na abolição "oficial" da escravatura. Essas pessoas dando depoimentos são de dois tipos básicos. O negros e os não-negros. Quase todos os não-negros estão em um pano de fundo mais suave, geralmente cercados por um ambiente que chama a 'intelectualidade'. O cenário mais comum é com livros ao fundo. Uma dessas não-negras está, inclusive, sendo entrevistada em uma biblioteca.

Os especialistas negros estão quase todos em um pano de fundo que nos remete às condições que os negros sofriam quando a escravidão era oficial. São galpões escuros com uma arquitetura que lembra às imagens dos desenhos dos livros dos locais usados como senzalas. Uma imagem recorrente é a dos muros velhos ou em ruínas. Uma especialista negra está sempre em um lugar aonde se vê pneus velhos e uma parede grafitada. Na opinião desta crítica, os cenários comunicam que os negros ocupam lugares marginalizados. Lugares de ruína, remetendo ao esquecimento social, à desvantagem.

Contrário a esse "esquecimento", os textos de suas falas, de seus depoimentos, invocam a memória dos eventos da escravidão e como ela influencia até hoje. Esse cenários nos fazem sentir que aqueles fatos ocorridos séculos atrás estão vivos hoje, e influenciam a vida dos negros de hoje. É como se o tempo tivesse passado, mas não no aspecto da escravidão, que até hoje estende sua influência e prolonga a iniquidade com que as populações negras são tratadas no Brasil desde sempre.

Os especialistas não-negros estão em ambientes mais "confortáveis". Mas estão falando como denúncia a essa realidade. São não-negros caudatários da causa dos negros. Favoráveis a um país mais justo. Assim, a Direção de Arte transmite subliminarmente, secundariamente (mas não de forma menos importante) que temos dois pontos de vista básicos no documentários. O dos especialistas que conhecem a injustiça social oriunda de uma lógica escravagista e o dos especialistas que, além de conhecê-la, vivem (literalmente) na pele essa injustiça.

Na parte do figurino, vê-se as mulheres paramentadas com vestimentas normais, mas os adereços - brincos, colares e pulseiras - todos remetendo à negritude, à afro-descendência. Há uma não-negra em cenário com os muro velho atrás e usando um colar parecido com adereços típicos de religiões com cosmovisão africana. Talvez, aqui é mostrada a miscigenação cultural. E uma quebra visual de limites entre os especialistas negros e não-negros. Os cabelos das mulheres também estão de acordo com a valorização da negritude. As negras os usam sem a lógica do "embranqueamento" de cabelos alisados, por exemplo.

Talvez ai houve orientação da produção, "vista-se preferencialmente assim" ou "use adereços assados se possível". Um princípio de caráter dramatúrgico na ação comunicativa? Sim, mas não de maneira a falsear a realidade, na medida que, com certeza os figurinos podem ter sido direcionados, mas são visuais que essas pessoas usam em algum momento de suas rotinas. 

Direção de fotografia sutil, mas técnica

Se a Direção de Arte usa cenários e adereços para nos transportar a um tempo do Brasil escravocrata, se usa para linkar esse período aos dias de hoje, a Direção de Fotografia não fugiu dessa raia. Os desenhos e a exibição de documentos, como recortes de jornais da época em questão, constituem o momento em que a psicologia das cores entra em cena, No universo imagético estabelecido pelo documentário há uma cor predominante. 

É um roxo mais próximo do vermelho que do azul, o que o deixa levemente deslocado de uma classificação de "cor fria", como é estabelecido pela técnica cinematográfica. No entanto, essa cor é usada geralmente para acompanhar cenas bizarras, muito comum em cenas de filmes de terror - veja que no Halloween é uma cor comumente associada a vampiros e bruxas, porém numa tonalidade mais próxima do azul, por tanto, mais "fria".

Na primeira imagem do documentário, no primeiro plano, esse roxo é usado num mapa mundi, numa animação que vai traçando linhas em várias partes do mundo a partir da África. Já fica muito claro já de saída que essa cor representa o próprio estado de escravidão. Vemos que quase todas as vezes que os desenhos são montados essa cor aparece envolvendo as figuras e as personagens representadas, mostrando que estão imersas na lógica escravagista. Assim também como os documentos. As frases de efeito e as máximas que povoam o documentário durante sua extensão, usam essa mesma cor como pano de fundo.

O título do documentário intercala o roxo com a cor negra. Não há como pensarmos, ao ver desta crítica, esta coloração predominante em todo o filme com outra conotação - não foi porque Alice Gomes achou lindo, não foi à toa. Inclusive, na parte inicial do documentário, num dos muitos momentos que as imagens são montadas enquanto algum especialista fala em "off" (em Comunicação, é quando há uma voz mas não se mostra quem está falando, "cobrindo" com imagens geralmente associadas àquilo que esta sendo dito), há uma foto de um instrumento de tortura que exemplifica nosso ponto de vista aqui.

É uma tábua em que se prendem as mãos e a cabeça da pessoa, que é obrigada a ficar na mesma posição o tempo todo, com os joelhos no chão e a bunda para cima. Enquanto o especialista fala, o instrumento é coberto pela animação com uma cor. Nem conseguimos adivinhar que foi o roxo característico do documentário de tão óbvio que é o seu significado nesta obra. Essa é a parte imagética semi estática do documentário. Na parte "humana" do doc, a iluminação tem um trabalho voltado para deixar integral todas as expressões de quem fala. Os rostos das pessoas dando depoimento tem luz principal e de preenchimento. Em nenhum momento alguma sombra se sobrepõe aos traços faciais dos especialistas.

A outra cor que tem função de transmitir ideias é um bege escuro, fazendo contraste com esse roxo. O significado dele pode ser a representação do próprio negro, visto que nas montagens de fotos e desenhos em que o documentário fala da marcha no Rio de Janeiro contra o mito da democracia racial no Brasil, os manifestantes são cobertos pela arte montada com essa cor. Claro que não há certeza absoluta sobre isso, mas os indícios audiovisuais apontam para esse significado.

Mas é nos enquadramentos que esta crítica considera o melhor desempenho da Direção de Fotografia. Os planos obedecem ao esquema básico de todo depoimento. Sempre a pessoa está sentada (por tanto à vontade para uma longa fala) é enquadrada mais próxima a um dos cantos do plano (da tela), de um jeito que seu olhar enquanto fala esteja sempre direcionado para o lado vazio do plano - para o lado interior do plano. Em algumas situações poucas, o especialista enquadrado está olhando para fora do plano, o que o cérebro humano reconhece como uma imagem que gera um pequeno desconforto.

Olhar para fora do plano para expressar desconforto
O principal desses poucos momentos acontece no início do documentário. Quando o especialista fala que os negros vinham para o Brasil em condições sub-humanas, convivendo com urina, fezes, cadáveres entrando em decomposição. O desconforto que essas informações geram foram expressas imageticamente por esse recurso do olhar para o lado externo do plano. Dificilmente não foi com essa intenção. 

Os enquadramentos quando se aproximam do primeiro plano, com a cara do depoente quase em close up (somente a face no quadro do plano) usam recurso de colocar a cabeça da pessoa com uma parte fora do plano. Isso acontece mais com os especialistas negros, mas chega a acontecer com alguns não-negros também. Em cinema de diegese ficcional, isso já foi usado, segundo a SBC, no filme Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, para manifestar extrema superioridade do personagem de Samuel L. Jackson perante outros em uma das cenas tensas do filme.

Aqui o uso parece ser outro. O documentário tem uma pegada bem humana, se preocupa em destacar as expressões faciais de quem fala. A iluminação preenchida e com luzes suaves (que geram menos sombra) é um recurso. O outro pode ser esse de aproximar o primeiro plano ao máximo, não importando se o depoente terá uma parte da cabeça fora do quadro. Outro significado talvez fosse a grandeza do ser humano, que não caberia no plano, mas essa hipótese parece para esta crítica menos provável.

Há também um movimento curioso de intercalação dos planos. Ou as pessoas são enquadradas em um plano mais aberto aonde podemos vê-las sentadas, às vezes em um plano mais fechado, um primeiro plano, bem próximo à cara. No plano mais fechado, o fundo está sempre desfocado, havendo destaque total para as faces de quem fala. Quando o plano abre, o cenário de fundo se revela. Mas parece que este movimento de planos obedece ao que está sendo dito nos depoimentos. Quando o especialista está falando de um aspecto humano, de pessoas, o plano costuma ser o mais fechado.


Quando a mesma pessoa vai para o momento da fala em que vai se referir a um estado de "lugar" de pessoas ou de coisas ou de conceitos, o plano abre, destacando o lugar onde o depoente está. Não é uma regra rígida, visto que a diretora não pode controlar tudo o que os especialistas dizem. Mas uma observação mais apurada mostra que há alguma relação entre os planos e o tema da fala das pessoas. Claro que é um método de descansar as vistas e a mente de quem está vendo. Deixar a pessoa sempre no mesmo plano poderia gerar uma sensação de cansaço visual, exaurindo mais facilmente o cérebro de quem assiste ao documentário em suas pouco mais de 1h30min.

Isso somado ao que dissemos sobre os especialistas negros quase sempre em cenários que remetem à escravidão oficial do negro no passado ou à exclusão decorrente dessa escravidão nos dias de hoje, leva a mensagens imagéticas que corroboram a mensagem do texto daquilo que está sendo dito. Uma professora falando do lugar do negro na sociedade de hoje e o plano abre para ela num lugar escuro, de tijolos velhos, que parece ter sido usado como senzala há séculos atrás, vai ser sempre sugestivo e a mensagem sai do patamar meramente falado, meramente textual, e ganha o contorno audiovisual. Fica com isso, mais poderosa como ação comunicativa, sem dúvida.

O lado em que os especialistas estão enquadrados nos planos muda constantemente - se num momento tal pessoa falava estava mais à direita, a pessoa seguinte de repente está mais à esquerda. A própria pessoa que foi enquadrada mais para um lado, em outro momento vai aparecer mais para o lado oposto em outro momento. Pode ser uma maneira de comunicar de forma imagética ao espectador que a ideia veiculada pelo documentário se verifica e se fortalece em diferentes pontos de vista - em diferentes ângulos.

Há um momento em que o enquadramento muda num mesmo plano. A câmera não está estável, o que pode ser proposital também para mostrar que a informação veiculada pelo texto gera desconforto. O especialista está falando desde um canto mais à direita do plano. Ele vai dizendo que o ponto de vista do negro foi se ajustando à sua condição de opressão (não exatamente isso, mas nesse sentido) e a câmera vai ajustando o depoente para deixá-lo enquadrado no centro do plano. Imagem trabalhando para corroborar o texto e torná-lo "audiovisulamente" trabalhado, por assim dizer.

O momento mais marcante dessa jogatina tácita de planos é quando, próximo ao final, uma especialista diz algo como "o negro ajudou a construir" esta sociedade, e o plano está aberto. Ela está sempre em um lugar onde ao fundo há paredes em ruínas, com uma delas pichada com spray preto, sem um desenho ou palavra preferida. Para esta crítica, o documentário expressou ali que o negro edificou com seus suor e sangue a sociedade brasileira e esta lhe dá a ruína em troco.                     

O protagonista do som é o conteúdo do que está sendo dito 

A trilha sonora do documentário "A Última Abolição", como citamos brevemente ao falar do desempenho do roteiro, está focada na fala dos especialistas. E não podia ser diferente. Não há riqueza sonora a ser explorada para além disso quando a obra cinematográfica não é uma diegese ficcional e sim um documentário. A trilha musical é simples, tem uma música fazendo um fundo tribal em vários momentos, e alguma coisa cantada em poucos momentos.

Da edição do som, há vários J Cuts (lê-se "jei cots" em inglês), que é quando o som do plano seguinte já aparece no plano atual. Isso é usado quando há as montagens dos desenhos nas imagens e já aparece a voz de algum especialista, do plano seguinte, sem mudar do plano das partes de montagens de imagens estáticas. É comum esse recurso em documentários, onde prevalece o depoimento.

Um documentário tem uma função primeira comunicativa, o que coloca o texto do que está sendo dito em primeiro lugar de importância ao falarmos da trilha sonora. A mensagem é principalmente veiculada por esse texto, um texto espontâneo exclusivamente oral - não há uma fala escrita decorada pelos depoentes, como é o caso dos filmes ficcionais, aonde as falas estão primeiramente colocadas em um papel escrito, decoradas pelos atores, que, por meio de sua capacidade dramatúrgica, iludem o público de que se trata de falas naturais, exclusivamente orais e espontâneas, no universo do filme.

E "A Última Abolição" tem muito a comunicar para a sociedade! As falas nos revelam informações que passam fora do conhecimento da maioria das novas gerações. As reais condições das populações negras aqui no Brasil na época da escravidão, no momento imediatamente posterior à abolição oficial e nos dias de hoje. Achamos que sabemos como são as coisas, mas o documentário nos mostra - por áudio - que não.

É dito, por exemplo, que ao se proclamar oficialmente a abolição, há registros da polícia prender mulheres só porque estas estavam comemorando o fim oficial da escravidão no Brasil (!!!!!). Os códigos penais, que imediatamente após decretada a lei Áurea correram para criminalizar todas as manifestações culturais, artísticas e religiosas ligadas ao universo afrodescendente. Rituais da cosmovisão africana, costumes ligados à população negra no dia a dia e até a própria capoeira foram considerados crimes passíveis de prisão (!!!!!!!).

Toda a movimentação jurídica que foi feita para que os negros não pudessem reivindicar reparações por terem tido seus direitos humanos suprimidos. Todo o jogo de forças desprendido para sufocar aqueles que queriam um fim de escravidão com assistência social e econômica para os ex-escravos e seus filhos. Como as personagens realmente importantes foram suprimidas dos registros históricos e de sua importância no movimento que culminou com a abolição oficial da escravidão. Aliás, até hoje os livros didáticos citam a Princesa Isabel como a principal figura da abolição por ter assinado a Lei Áurea, dando uma imagem de "concessão da elite branca aos negros" à abolição - uma grande mentira histórica reproduzida como verdade por gerações e mais gerações.

Qual a importância disso para a sociedade? Aqui o jornalista responsável por esta crítica dá o seu depoimento pessoal sobre isso. Além da crítica ao cinema, faço também crônica esportiva num blog pessoal - o "Rei da Bahia FC". Costumo sempre me ater à parte meramente técnica da disputa, principalmente em jogos de futebol e em lutas de MMA. Em 2013, acontecia no Brasil a Copa das Confederações, evento que era realizado como teste para a Copa do Mundo - a que no ano seguinte o Brasil foi massacrado por 7 a 1 pela Alemanha, e matando de vez o "mito da superioridade natural do futebol brasileiro".

Nos jogos da Copa das Confederações precisei que minha mãe me atentasse para um fato degradante para o nosso país. Praticamente não havia negros entre os torcedores presentes aos estádios durante os jogos. Os únicos que identificávamos quando as câmeras faziam o giro de imagens nas arquibancadas eram os parentes dos jogadores. Até em Salvador, na Arena Fonte Nova, numa cidade que tem o título de ser a maior do mundo com percentual de população negra fora da África, identificamos no mar de pessoas UMA única mulher negra - e ela estava em companhia do namorado branco.

Como uma pessoa que estudou história, que conhece o preconceito e o racismo, como um jornalista dotado de senso crítico como me considero ser não me dei conta desse Apartheid  escancarado bem na frente dos meus olhos? É porque não tenho o costume de enxergar a questão tão profundamente como a mensagem do documentário "A Última Abolição" nos comunica em seu produto final. Porque não conheço DE VERDADE a história sobre a "abolição" da escravatura como deveria conhecer. 

Como todos deveriam conhecer!

Conclusões

Um documentário de linguagem simples e de comunicação cientificamente poderosa. As imagens são muito bem trabalhadas para transmitir as ideias em debate no produto final. A única coisa que incomoda, que faz um ruido silencioso, é que a voz do negro excluído da educação, iletrado por discriminação sócio-econômica, não aparece em nenhum momento. 

Todas as vozes são intelectualizadas, pelo menos ao nível de pronunciar um português limpo, do ponto de vista da norma culta. É verdade que isso quebraria o ritmo desse discurso com pretensão de validez amparada em boas razões - até científicas. Mas era um desafio que valia a pena Alice Gomes se propor.

Mas o que valia a pena mesmo era difundir esse documentário aos quatro ventos. Suas informações e pontos de vista são algo muito necessário para que tenhamos a chance de entender melhor nossas raízes enquanto país e evoluirmos para um meio social mais justo de verdade. Muitos pensam por ai que o negro na favela tem chances iguais a um cidadão de classe média branca. É verdade!

O Brasil vive nessa ilusão hipócrita até hoje. Achamos que o jovem negro na favela merece ser morto pela polícia porque é bandido. Ainda que seja, por que é bandido? Porque há uma lógica de uma abolição da escravidão que o colocou nessa condição. Parece chover no molhado dizermos isso, mas é verdade. Não terminamos de entender isso até os dias atuais.

E nessa falsa democracia racial da qual nos gabamos, nosso pensamento permanece atrasado e medíocre. Porque a abolição da "escravidão" nunca aconteceu para além da pluma chique da princesinha que em suas vestes nobres, comida e educação garantidas, assinando um pedaço de papel cuja função histórica de verdade não foi libertar ninguém - foi nos mergulhar em uma mentira narcisista e desumana.

A "Última Abolição" é um evento do passado que nunca aconteceu - não de verdade, na plenitude que deveria ter acontecido. Precisamos fazê-lo acontecer no futuro, desde já, todos os dias e é essa, na opinião desta crítica, a mensagem audiovisual muito bem comunicada por esta (por enquanto) silenciada obra de arte do cinema do real.

Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.                        

                 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

DEVIR CINEMA DEBATE SOBRE "A ÚLTIMA ABOLIÇÃO"!



O Cine Clube Devir Cinema promove nesta próxima sexta (27), às 20h (Brasília), o debate sobre o último filme do Devir Negro, que é a parte da Mostra Virtual em homenagem ao mês da Consciência Negra. Todo o público está convidado para uma transformação no pensamento a partir documentário "A Última Abolição", dirigido por Alice Gomes. O debate terá mediação da professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a acadêmica Jancileide Souza. 

O Cine Clube Devir Cinema é um projeto de extensão da UFOB. Participantes na Mostra Virtual ganham certificado válido para currículos acadêmicos e no geral. Para garantir o certificado é necessário se inscrever na Mostra, porém a participação é aberta a todo público, mesmo sem inscrição.

Confira o nosso calendário de debates e o passo passo para se inscrever e participar do debate. Participe conosco dessa transformação do pensamento por meio da 7ª arte:   

CALENDÁRIO DA MOSTRA VIRTUAL "DEVIR NEGRO"

06/11/2020: "Faça a Coisa Certa" (1989). Direção: Spike Lee

13/11/2020: "Café com Canela" (2017). Direção: Glenda Nicácio & Ary Rosa

20/11/2020: "Fronteiras" (2017). Direção: Apolline Traoré

27/11/2020: "A Última Abolição" (2017). Direção: Alice Gomes

04/12/2020: "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008). Direção: Fernando Meirelles

11/12/2020: "O Dilema das Redes" (2020). Direção: Jeff Orlowski

18/12/2020: Conversa com o público para sugestões, críticas, continuidades.


PASSO A PASSO PARA INSCRIÇÕES, DEGUSTAÇÃO DO FILME E PARTICIPAÇÃO NO DEBATE:

1º PASSO - É necessário realizar, antes de tudo, a sua inscrição na Mostra Virtual para garantir seu certificado [Clicando aqui!].  

2º PASSO - Baixar o filme e assisti-lo previamente! O link onde pode ser encontrado já está disponível! [Clique aqui para baixar o filme!]

3º PASSO - Para participar do debate sobre o filme, que é o principal momento de todo Cine Clube, você precisa acessar a sala do Google Meet que reservamos para esse fim. É necessário ter o aplicativo baixado. Se você ainda não o possui, também disponibilizamos o link [Clique aqui para baixar o aplicativo!]. Baixado o aplicativo, basta acessar a sala de reunião no dia e horário especificado - sexta feira 20 às 20h (Brasília) - e participar! [Clique aqui para acessar a sala de reunião!]

4º PASSO - Divirta-se transformando e enriquecendo seu pensamento através do cinema conosco! 

Maiores esclarecimentos e orientações pelo e-mail devircinema@gmail.com 

sábado, 21 de novembro de 2020

COMENTÁRIO DEVIR 3: NÃO HÁ "FRONTEIRAS" PARA O SOFRIMENTO DAS MULHERES!

Nesta última sexta (20) o Cine Clube Devir Cinema proporcionou aos seus participantes mais um grande momento de discussão e transformação do pensamento pela 7ª arte! Em apreciação o icônico filme "Fronteiras", da diretora Apolline Traoré. Um filme africano foi o grande desafio para esta crítica analisar nos seus aspectos de significado por técnica cinematográfica. 

Não há utilização convencional de diversos aspectos no universo particular do enredo com relação aos aspectos normalmente trabalhados num cinema mais ocidental. A maneira de usar as cores é um bom exemplo disso. Foge bastante do que é o costume no cinema. Nem por isso, a narrativa perdeu. Apenas exigiu mais do nosso olhar entender os signos a serviço da mensagem pretendida por sua autora. 

AVISO IMPORTANTE a você que está lendo esta crítica! Veja o filme primeiro [Clicando aqui!] antes de continuar esta leitura! Não há como destrinchar o filme sem dar spoilers e estragar a experiência de assisti-lo pela primeira vez. Outro lembrete importante é que este comentário aqui se trata da visão pessoal do jornalista a serviço do Devir Cinema, Paolo Gutiérrez, e não se pretende uma verdade absoluta sobre o filme.

Arco narrativo principal e secundários

Com relação ao roteiro, a personagem principal é bem definida e clara a olhos bem vistos, desde o primeiro plano. Adjara (Amélie Mbaye) começa uma viagem de ônibus partindo de Dakar e que atravessa parte do continente africano, passando por países como Burkina Faso e Nigéria. Na passagem de uma nação para outra, sempre há o problema de atravessar as fronteiras, que são os lugares aonde a trama ganha suas complicações. O destino final dela, assim como de suas coadjuvantes, é Lagos. 

Adjara em um plano por "cima do ombro"
A principal Adjara, é uma comerciante de mercadorias de baixo custo (o que aqui no Brasil se chamaria de "muambeira") fazendo a sua primeira viagem. Ela é inexperiente no ofício e se percebe que saiu muito pouco de casa ao longo de sua vida, já que parece desconhecer como funciona a dinâmica social e econômica nas estradas da África, especialmente na atividade que se meteu a praticar.

Apesar da inocência, a personagem tem valores morais humanitários muito convictos e se esforça para fazer com que as demais pessoas em sua volta tenham a mesma perspectiva - um jeito de ser solidário e de ajudar sempre o próximo em dificuldades. Podemos dizer, então, que a personagem foi elaborada em um arco narrativo plano, de acordo com os preceitos da escritora especialista em narrativas em geral K.M. Weiland em seu livro Creating Characters Arcs ("Criando Arcos de Personagens", em inglês), como foi divulgado pela Sociedade Brasileira de Cinema (SBC), em live realizada por Bruno Albuquerque no dia 20/10/2020.

A segunda personagem em importância, uma muambeira que, ao contrário da "heroína" da história, é experiente e já tem 15 anos na atividade de comprar mercadorias em país atravessá-las pelas fronteiras, conhecendo bem as artimanhas para isso. Seu nome é Emma (Sy Savané Naky). Dominadora da dinâmica que rege as idas e vindas de país para país no continente, ela acredita em uma "mentira" motivada por um fantasma - um evento trágico do passado. Assim ela é uma personagem do arco da mudança positiva, que ela experimenta ao longo da trama.

A durona e sempre desconfiada Emma
Seu arco porém, é secundário e complementar ao da personagem principal, o que gera amizade entre as duas, mas também uma série de conflitos capaz de gerar discussões mais ásperas entre as duas e vez por outra separá-las. Porém essa separação nunca as coloca em regiões geográficas muito distantes uma da outra. Separam-se por pouco tempo e estão juntas desde que se conhecem até perto do clímax do filme.

Isso se explica por ser um filme do tipo road movie - uma história que se passa em uma viagem por uma estrada. Não há muito espaço para separações que coloquem personagens de caráter central na trama muito distantes por muito tempo. Até porque exigiria planos e montagens que mostrassem histórias paralelas, o que exigiria um orçamento e liberdades de locações que, sabemos, os realizadores do filme não dispunham.

Assim, o roteiro nos leva com a personagem principal e as suas secundárias. As outras, uma acredita em uma "mentira" e tem um fantasma, mas ela não está em atitude que gera mudança positiva. Ela já tem uma atitude positiva perante a vida, que é a jovem adulta, quase adolescente. Ela foi enganada pelo noivo que a fez viajar com remédios ilegais para levá-los a traficantes do outro lado do país. Ela acha que é um comércio legal e que o noivo usará o dinheiro que ganhará na transação para se casar com ela.

A "obesa" e a "adolescente"
Tudo dá errado para esta personagem e ela acaba por levar pelo menos uma das amigas para essa ruína junto com ela. Talvez ela tenha um arco narrativo secundário mais próximo do arco de queda, segundo coloca a SBC, citando K.M. Weiland. Essa amiga é a que fecha o círculo das coadjuvantes em torno da personagem principal. Ela já descobriu a "mentira" de sua vida, experimentou a mudança positiva e está indo eliminar o "fantasma" de seus eventos passados traumáticos. Brigou com a irmã e lhe deu um soco na barriga, o que a fez perder o filho, seu sobrinho.

A irmã a perdoou, ela passou a compreender que não precisava fugir da família para se redimir (a "mentira" em que acreditava) e está viajando de volta para participar do casamento da irmã, a convite da própria. Essa é uma personagem que esta crítica vai chamar de estar em um arco narrativo superado. Uma personagem que no filme já vive um epílogo. Há um clímax para ela que estaria por vir, que é o motivo de sua viagem - o casamento da irmã - mas ela não chega lá.

Eventos motivados pela adolescente e seu relativo arco de queda fazem com que a viagem das 4 se atrase e elas acabam por cair numa estrada deserta de policiamento, aonde seu ônibus final é assaltado e, para salvar a principal, acaba morrendo. Uma morte que faz sentido para o roteiro, já que ela vive um pós final de história, desde o ponto de vista da narrativa como a coloca K.M. Wiland. Seu clímax, que seria o final feliz de se reencontrar com a irmã para fazerem as pazes pessoalmente é uma frustração necessária ao tom de crítica que a narrativa imprime durante todo o filme.

As mulheres estão em uma viagem que, metaforicamente falando, representa a vida de uma mulher africana. Uma "estrada" difícil, num mundo dominado por homens, vítimas destes e acossadas o tempo todo. É uma crítica de viés feminista. Todos as autoridades que aparecem nas fronteiras são homens. Todos os agressores que lhes colocam dificuldades são homens. Esta personagem então, já em epílogo no filme, foi a destinada a representar o feminicído na trama - o assassinato injusto das mulheres por homens por motivos banais, como é comum nas sociedades, não só africanas, como do mundo todo.

As mulheres se submetem à corrupção generalizada da trama, se mostram corrompidas, mas não é por opção própria. Elas precisam se adaptar a esse mundo "masculino" para poder sobreviver. Nem mesmo quando a personagem principal seduz o chefe da primeira fronteira para escapar de uma multa indevida por não viajar com o cartão de vacinação, ela sai de sua atitude positiva perante o mundo. Apenas deu "um jeito" para seguir com sua viagem, com sua vida. 

No meio da viagem, a adolescente é descoberta em uma das fronteiras com os remédios ilegais e é presa por um soldado que a estupra como exigência para deixá-la prosseguir na estrada. As outras 3 amigas, incluindo a personagem principal, a salvam matando o soldado. Isso culmina com que as 4 passam a ser fugitivas, principalmente a adolescente. No fim, quando uma delas é assassinada e elas conseguem chegar ao destino, as 3 se separam e a adolescente dá um jeito de reencontrar o noivo. Enquanto chama a polícia, ela o assassina com um tiro. 

Esse é o clímax! Enquanto a personagem principal fala um discurso onde narra toda a dificuldade das mulheres africanas ao longo de sua vida e citam os machismos aos quais estão submetidas, a adolescente faz valer aquilo para o qual o filme existe. A crítica a esse machismo é o motivo do filme. O tiro da adolescente em seu noivo é simbólico também. Representa o "basta!" a essa lógica tenebrosa que vivem as mulheres. O detalhe aqui é que o clímax encerra o filme. O epílogo do filme, as cenas que dão ponto final à história, dando sentido à conclusão, acontece antes, mostrando como terminaram as outras personagens.

Um filme é dividido em 3 atos. A maneira como o terceiro ato é finalizada é peculiar deste filme. Geralmente, o clímax (a cena para a qual o filme existe) acontece antes do epílogo. Em "Fronteiras" ele é usado para concluir o epílogo. Muito bem pensado. Isso acaba por compensar o ponto fraco do roteiro. O primeiro ato é onde se desenvolvem as personagens, onde se apresentam as personagens para o público. O segundo ato é onde a aventura de fato acontece. Neste filme os dois atos não tem distinção.

O filme já começa no segundo ato, na aventura em si, e as personagens vão sendo apresentadas com a aventura em andamento. Assim, não há um momento de respiração no desenrolar da trama. Ela vai desde o início, com a viagem, e só há um momento em que há esse descanso do ato de viajar no filme - justamente quando viagem termina e acontece o terceiro ato. Isso produz um efeito em que o espectador acaba por sentir o cansaço da viagem que as personagens sentem.

Porém esse cansaço faz com que o público se arraste pelo filme em determinados momentos, desejando o fim dele da mesma maneira que desejamos o fim de uma viagem longa e cansativa a certa altura da mesma. Podemos dizer que essa fusão entre primeiro e segundo ato, deixa o filme um tanto problemático em sua narrativa porque exige uma certa paciência do público de entender que não se trata de uma narrativa convencional e que é necessário ter paciência para um final que vai valer a pena - e muito!

Mise en Scéne com "coisas" em 2º plano e com função de cores não tão definidas

A Mise en Scéne é um termo que vem do francês e em teatro significa tudo o que está em cena. No cinema, significa tudo o que está visivelmente no enquadramento - o que exclui a análise do som quando se usa o termo, na acepção preferida da SBC. Claro que, como em todo filme, a narrativa tem suporte na Mise en Scéne em "Fronteiras". Porém, não há função simbólica mais aparente para o universo de objetos e iluminações no filme. 

Os ângulos dos enquadramentos são pouco usados, sendo normais (paralelos em relação à linha do chão) na maior parte do tempo. Há objetos representativos durante toda a trama, mas a maior parte do universo deles, incluindo os cenários, parecem mais aleatórios do que propositais. Talvez o baixo orçamento que transparece no filme o obrigou a adotar uma linguagem cinematográfica mais realista. Isto é, a copiar os elementos mais como acontecem na vida real, mais do que propriamente usá-los para comunicar eventos futuros do filme, por exemplo.

Nessa pegada de "neo-realismo" africano, por assim dizer, as cores usadas pela direção de fotografia (enquadramentos e iluminação) e pela direção de arte (todas as "coisas" que aparecem no filme, desde os cenários até os figurinos e apetrechos, objetos além da maquiagem dos personagens) têm significados, mas às vezes parecem de utilização sem construção de mensagens subliminares por meio de estímulos inconscientes para reações naturais do público.

As 3 cores principais logo no início 
Desse modo, 3 cores parecem dotadas de significado: o azul, o branco e o vermelho. Há no filme uma menção à distinção entre cores quentes e frias, mas ela não parece seguir uma lógica única nas diferentes fases da trama. Por exemplo, o azul que é uma cor fria, normalmente associada à 'tristeza' ou mesmo à 'frieza' tem uma utilização questionável. No início do filme, é perceptível que é usado principalmente por homens e apenas as mulheres vestem roupas com cores quentes, inclusive a personagem principal, que usa um alaranjado logo nos primeiros planos.

Mas a regra não segue essa risca. Há mulheres usando tons de azul predominante também, embora em número bem menor. Então, até a metade da trama, mais ou menos, o azul não representa 'tristeza'. A própria personagem principal usa um vestido todo azul num momento de alegria, quando consegue dobrar a resistência da principal coadjuvante e se tornar sua amiga. Ela us um vestido azul num momento de alegria que ela transmite com um sorriso sincero, mostrando os dentes e tudo mais (sinal de um sorriso profundo, cuja alegria não é superficial).

No entanto, no final do filme, no momento das duas personagens principais irem comunicar a morte da amiga para a família, vemos o azul associado à tristeza. No primeiro plano do filme pode estar a significação principal dessa cor. Muitos homens a usam, o que pode ser referência ao machismo - e que estão submetidas a ele, cercadas e revestidas com ele. Mas concomitante a isso, pode significar também a pobreza. Praticamente todos os personagens são de classes mais pobres. Este sentido duplo explicaria o predomínio dessa cor em vários momentos doo filme, tanto em homens como em mulheres.

Não dá pra ter certeza sobre o azul, mas dá para ter certeza sobre o vermelho. No início do filme, a personagem principal é abordada por um homem que lhe pede ajuda para carregar a mala. Quando ela pergunta do que se trata a bagagem, o rapaz revela que são CD´s contrabandeados. Ela se recusa a ajudar, mas cede quando o rapaz lhe oferece um CD grátis como pagamento. Ela pergunta se tem um disco de sua artista favorita e o rapaz a presenteia. A bagagem é passada pela fronteira por "mulas" que contornam os precários postos aduaneiros de bicicleta e devolvidas ao rapaz, que faz o ônibus parar no meio da viagem para pegá-las de volta.

A bagagem é de cor vermelha, o que significa que essa cor no filme está associada ao perigo, à ilegalidade e mesmo ao risco de morte. É um vermelho de sangue. Essa cor está presente em outros dois momentos de visível perigo e a Mise en Scéne a usou para antever um desses dois momentos. Ela está presente em vários planos que mostram as sinalizações da estrada. Claro que é uma cor normal nas placas, especialmente nas de "Pare", mas acaba sendo usada para ilustrar que o perigo SEMPRE ronda as personagens centrais da trama.

Mas é marcante a presença dessa cor no momento do estupro da adolescente (um barril no canto da cabana onde aconteceu a violência sexual) e em um dos ônibus que as personagens seguem viagem. Só um ônibus é dessa cor, exatamente o que elas presenciam uma cena de pessoas acidentadas e ensanguentadas à beira da estrada. Vermelho com amarelo forte. No acidente presenciado pelas personagens centrais, elas ajudam os vitimados e logo depois o carro que virou na estrada pega fogo. Não pode ser só coincidência que justamente o ônibus onde tais fatos aconteceram seja dessas cores.

Os ônibus ou eram brancos ou de cores frias (azul e verde) até aquele momento da viagem. É bem provável que a Mise en Scéne foi usada para antecipar que eventos trágicos, envolvendo sangue e destruição, através das cores desse ônibus. No início do filme, na primeira troca de ônibus que Adjara efetua, há um plano curioso. O ônibus parte rumando ao fundo do enquadramento, dando perspectiva à cena. Nessa impressão meio 3D transmitida por esse ponto de fuga (a partida do ônibus), os soldados da fronteira, trajando azul estão sentados assistindo à partida, bem mais próximos do público.

Logo o plano fecha um pouco mais e os soldados saem do enquadramento e o que ganha destaque é um homem situado ao canto direito inferior do plano, deixando a partida do ônibus ao centro. Esse homem está amarrando uma cabra pelas patas. E a cor da cabra é branca igual ao ônibus em partida. Seria ai a Mise en Scéne sendo usada para comunicar uma metáfora sobre a viagem? A cabra tem os seus meios de locomoção violentamente impedidos de realizar sua função básica de transporte. Talvez isso indique que a protagonista conseguiu passar por aquela fronteira, mas que vai ter um percurso difícil.

A viagem estaria "amarrada", usando uma expressão popular bem típica para dizer que algo tem dificuldade de se desenvolver. Dificilmente esse plano ai foi gratuito. "Ah tinha um cara amarrando a cabra bem na hora da tomada e ai como o filme é de baixo orçamento, foi melhor deixar assim". Esta crítica duvida muito disso. O que nos remete a uma análise da cor branca. Ela está no primeiro e no último ônibus usados pelas viajantes da trama. Indica o meio de transporte, corroborado pela equivalência da cabra branca tendo as patas amarradas? 

É provável que sim, mas o branco tem outras utilizações no filme. Quando o ônibus que identificamos aqui como "perigoso" por ter as cores vermelha predominante e amarela, remetendo ao fogo do acidente presenciado por Adjara e sua trupe e ao "sangue" - remetendo à situações de perigo da viagem - quebra e para no meio da estrada, o co-piloto da vigem pede carona a um estranho que passava com um carro de carga. A cor dele era branca. Quando as mulheres se tornam fugitivas por proteger a adolescente do grupo do estupro, elas fogem se embrenhando pelo mato e chegam a outro ponto da estrada. Quem lhes dá carona para seguirem viagem são dois homens em um carro de cor branca.

Contrabandista de CD's e Adjara
O homem que pediu ajuda a Adjara para atravessar uma bagagem cheia de CD's contrabandeados, o homem a convence a ajudá-lo subornando-a com um CD, mas também argumenta para isso. Diz que faz essa atividade ilegal porque tem filhos para alimentar e o contrabando seria para esse fim. Nada mais legítimo do que um pai se esforçando para dar de comer às suas crias. Ele infringe a lei, mas não está matando e nem roubando ninguém para isso. Está contornando a pobreza. Adjara o ajuda meio a contra-gosto. Esse homem traja branco.

É possível que o branco represente a solidariedade da viagem. Quando uma das personagens centrais morre assassinada, uma ambulância, de cor branca, leva - poucas profissões como a área de saúde tem o comportamento solidário mais destacado como as áreas da Saúde. Estranho que para essa cena de violência, o vermelho não é destacado para antever o perigo. A cena não tem vermelho em destaque no momento do assassinato. A performance da atriz cuja personagem será morta é que é usada para antecipar esse momento. 

O que na nossa opinião indica que a Mise en Scéne está submetida às expressões humanas para comunicar a mensagem do filme. Nessa lógica, a psicologia das cores, bem como os objetos ganham um segundo plano em relação ao aspecto humano, aos diálogos e às expressões das atrizes - estas que são o centro do universo no filme. O baixo orçamento explica isso? Talvez, mas pode ser intencional também. Assim como os dois filmes que avaliamos anteriormente aqui - "Faça a Coisa Certa" e "Café com Canela" -, "Fronteiras" se preocupa em mostrar que o ser humano é a coisa mais importante da mensagem a ser transmitida,

E a Mise en Scéne menos focada nas "coisas", nos fatores "não-humanos", enquadramentos com destaque para os gestos e expressões das pessoas e suas reações, pode ter propositalmente sido trabalhada dessa forma. Encaixando sua intenção comunicativa com as limitações financeiras que a produção com certeza enfrentou para gerar o produto final na tela.

Direção de arte usada na metáfora transmitida

Mas esse aspecto menos coisificado não quer dizer que o universo peculiar do filme não use também os objetos de forma hábil na transmissão da mensagem. Dissemos que o roteiro pode ter construído uma metáfora associando, de forma bem evidente (na opinião desta crítica) a 'viagem' ao trajeto de 'vida' de uma mulher que nasce e vive na África. O primeiro plano do filme mostra Adjara colocando a cara para fora da janela do primeiro ônibus em que viajava. Suas roupas estão em cor laranja bem quente (cor viva) e as cortinas da janela que as cercam são azul.

Como já dissemos, o azul pode estar associado ao machismo do mundo que a cerca, bem como à pobreza do meio social em que vive. Os objetos - roupas e as cortinas - são usados aqui para mostrar o "nascimento" da personagem no universo do filme. Mulher cheia de vida emergindo de um mundo patriarcalista onde as pessoas têm dificuldade de sobreviver em suas necessidades materiais. Assim a mulher nasce e já ganha o mundo tendo que se virar para sobreviver.

Outro objeto que ganha destaque é uma bolsa-pochete que Adjara carrega em sua cintura e onde está todo o dinheiro que possui para comprar mercadorias que revenderá posteriormente. O contrabandista de CD's, sentado ao seu lado neste início de viagem percebe que ela carrega essa bolsa bem rente ao seu ventre. O objeto, mencionado e destacado neste e em outros momentos do filme, praticamente não aparece. Apolline Traoré terá tentado associar a "riqueza" da mulher ao ventre que gera vida e pelo qual a humanidade se prepara para ganhar a luz? É bem provável que sim, na opinião desta crítica.

Mas veja a tendência mais humana da mensagem aqui. O objeto, a "coisa" praticamente não aparece. Terminamos o filme sem ter memória de qual o aspecto dessa bolsa. Como já tínhamos dito, a ser humana ganhando mais destaque do que os seres inanimados do filme. Um momento em que essa bolsa é mencionada também ganha destaque. Quando Adjara e Emma finalmente conseguem virar amiga, a protagonista mostra à sua principal coadjuvante aonde guarda o dinheiro. Esta a repreende dizendo que sua inocência é tal que ela mostra para alguém que mal conhece aonde está guardada sua riqueza.

Adjara consente a crítica como válida e reconhece que em matéria de vigem com fim de transporte de mercadorias ela tem muito que aprender. O curioso dessa cena em termos de Direção de Arte, além do "ventre rico" já mencionado, são as roupas que as duas usam. E o cenário também. Usam vestidos que as deixam imponentes e belíssimas com turbantes típicos da moda feminina africana. Mas as cores dessas roupas são predominantemente azuis. E esse, como já mencionamos, é um momento em que ela estão celebrando sua amizade recém conquistada.

É um momento feliz das duas, mas trabalhado com a predominância de uma cor fria no figurino. No cinema, azul é usado para momentos tristes, ou momentos de frio. Raramente para uma celebração como essa. Também contraria a tese que o reto do filme parece nos dizer, do azul associado ao machismo e à pobreza. Elas estão com dinheiro próprio jantando em um restaurante com aspecto de organizado e limpo - não é uma "espelunca" ou um boteco. E as duas bem vestidas e altivas. Tudo sugerindo um momento de 'empoderamento feminino' e 'independência' de duas mulheres pelas suas próprias forças.

Mais que isso, as duas falam de suas riquezas. Emma fala que conseguiu com o comércio de panos dinheiro para que s filhos estudassem e passassem a viver na Europa. E Adjara fala da pequena fortuna que carrega para comprar mercadorias. É um momento aonde a "pobreza" e o "machismo" ao qual o azul está associado no resto do filme simplesmente estão completamente alijados da cena. Aqui o azul pode ter ganho outra conotação. A de hiererarquia: Adjara usa um azul bem clarinho, celeste, e Emma usa um azul escuro com detalhes de vermelho bem escuro. O azul aqui mostra a mais experiente falando com a menos experiente.

A hierarquia está na tonalidade - quanto mais escuro o azul, mais experiente é a mulher em viajar para fins de muamba. E os detalhes em vermelho escura mostram que Emma já passou por vários perigos, estando mais apta a identificá-los, como a própria Adjara admite na cena. Daí virá a cena do ônibus do "perigo". O detalhe é o cenário, a rodoviária também tem as cores amarelas e vermelhas. Homens vestem essas cores também no local do embarque. Não há dúvida que a direção de arte foi usada para antecipar as turbulências violentas que estavam por vir. A viagem, a partir dali, será violenta para a personagem principal e sua trupe.

Nesse ônibus também se percebe, no interior, a predominância do azul em descompasso com momentos de comédia da cena. A personagem que já está em seu epílogo narrativo, cujo nome é Vishaa (Unuwana Udobang), é obesa e tem dificuldade para sentar em um lugar só, impondo à adolescente um sofrimento. Adolescente, chamada Sali (Alizétou Sidi), que já tinha aparecido segundos antes no embarque, se despedindo do noivo. Este usava roupas mais escuras e ela o mesmo amarelo associado à destruição. Ele é um traficante que a engana, e suas roupas podem indicar seu lado obscuro. Ela usa uma cor associada à destruição no filme. Pode estar de acordo com seu arco narrativo de queda em relação à desventura que ela experimenta posteriormente e que faz as outras experimentarem também.

Está ai, finalmente, o núcleo central do filme todo presente no mesmo quadro, com o segundo ato em andamento desde os primeiros planos e até esse momento sem terminar de desenvolver todas as 4 personagens significativas da trama. A SBC diz que o recomendável é esse desenvolvimento ser concluído até o minuto 25 do filme, e ali já passa do minuto 33 e ainda haverá desenvolvimento de personagem sendo concluído bem depois disso. É quando entra no ônibus o que chamaremos aqui de um "estranho no ninho".

Todos as personagens do filme, embora algumas investidas de autoridade, aparentam a pobreza sintomática no continente africano. Menos o homem de terno e gravata, sapato fino que entra no ônibus e flerta com Adjara - a qual lhe responde positivamente com um sorriso. Logo depois, todos sentem um cheiro azedo no ônibus e a Sali confere que o odor vem exatamente do homem bem vestido. Ele tinha adormecido acabado por descuidar-se de suas flatulências com o cochilo. As 4 "heroínas" do filme caem na risada nesse momento. Isso e mais a cena jocosa de Vishaa obesa reivindicando dois lugares perante Sali, praticamente sentando-se em cima dela, não combina com a predominância do azul e outras cores frias, no cenário e nos figurinos.

De qualquer forma, este homem bem vestido com certeza não está com essa aparência porque Apolline Traoré tenha quedas por homens com pose elegante - igual a Adjara. Ele representa um status econômico superior na trama. Embora esteja viajando de ônibus, ele é um advogado e com certeza com poder aquisitivo superior ao de toda a maioria das personagens que apareceram. Especialmente as mulheres. Nenhuma mulher tem aparência de poder aquisitivo maior como este advogado (com problema de gases) aparenta. Para esta crítica, o filme denuncia, com esta utilização específica da Direção de Art, e a posição econômica inferior das mulheres em relação ao sexo masculino.

E ele é indiferente ao sofrimento das "heroínas". Ele apenas ajuda Adjara quando esta lhe solicita, mas porque tem interesse sexual e amoroso nela. Deixando seu cartão de advogado com ela, ele fez as vezes de intérprete quando a protagonista tentou ajudar uma mãe com filho de colo em apuros. A posição de autoridade também está só com os homens, o que se vê entre os militares e suas fardas. Só há uma exceção. Quando Adjara está próxima de uma das fronteiras, e além dela só Emma do núcleo principal chegou ao mundo do filme, uma mulher começa a pedir que outros passageiros guardem suas joias, para driblar o controle alfandegário.

O último que ela abordou foi um homem de boné que concordou em guardar os últimos colares. Após passarem pela barreira na estrada, a mulher solicita que homem lhe devolva as joias e este se faz de desentendido, e se recusa a assumir sequer que pegou as joias. Ao passar por um posto policial, uma mulher soldada entra para verificar a identidade de todos os passageiros - a única mulher em posição de autoridade em todo o filme. Sua farda a coloca em posição superior a todos no ônibus, inclusive aos homens. Quando a senhora que teve os colares subtraídos denunciou que o rapaz de boné não lhe devolveu seus colares, a policial usa a autoridade e recupera as joias, escondidas num sanduíche, levando o homem preso.

Mas acaba por levar também a dona das joias presa, por driblar o controle alfandegário. Nem quando uma mulher foi autoridade no filme, ela ajudou outra mulher em sua "viagem" pela vida. O evento mostra a desunião entre as próprias mulheres. Ela tinha o poder para liberar a senhora lesada pelo rapaz de boné  e ninguém no ônibus a questionaria por isso. Mas ela resolve não proteger a mulher, levando-a à condenação de um delito cometido por motivo de sobrevivência - provavelmente, as joias são para vender em outro país onde consiga um preço melhor e ajudar a família, igual às outras comerciantes que aparecem no filme.

E a cena do estupro de Sali, e todas as consequências que vieram dela, é onde a Direção de Arte foi mais significativa talvez. Fora um barril em vermelho dando o caráter de perigo da cena, já citado anteriormente, é aqui onde a adolescente adquire o segundo dos 3 objetos mais significativos de sua participação no filme. O primeiro é um aparelho celular, que, sendo ela a única do quarteto a usar uma tecnologia mais avançada, serve para marcar com ela é de uma geração diferente das outras "heroínas", usando uma comunicação mais "moderna" que as outras por assim dizer, destacando (pelo objeto) como ela é bem mais jovem que as demais. 

O segundo objeto é a arma que ela rouba do soldado estuprador logo após as amigas o matarem e com a qual ela realizará o clímax do filme posteriormente. Quando as heroínas matam o soldado e fogem deixando-o sobre o feno onde forçou o sexo com a jovem, um outro colega dele se dá conta do acontecido e vai até a cabana. Logo que vê o estuprador morto leva à boca um apito para alertar aos demais sobre a situação grave. Mas se contém ao perceber que as calças do colega morto estão abaixadas.

Ele adia o alerta para disfarçar as condições da morte do estuprador, levantando sua roupa. É a Direção de Arte usada para criticar uma sociedade que encobre literalmente "embaixo do pano" a violência sexual que as mulheres têm que passar durante sua vida. E o faz pelo gesto de manipular um objeto do filme - a calça arriada. Após o evento, Sali só pode continuar viagem com as amigas usando um véu e burca que lhe cobrem o rosto todo. No posto da fronteira seguinte, o rosto dela está em um cartaz que revela que ela é procurada. As amigas chegam a ter que escondê-la em uma caixa para que ela possa seguir viagem.

Além da caixa, o véu e a burca são aqui, para esta crítica, a condição mais cruel que uma vítima de estupro tem que aguentar. Ela sofreu a violência, mas ELA é procurada. A vítima sendo criminalizada e esse objeto é usado com sentido metafórico para denunciar esse absurdo que as mulheres sofrem. Nessa situação, a sociedade deveria protegê-la e lhe dar razão, em vez de obrigá-la a esconder a cara e se esconder da própria justiça como se fosse um rato.

Na parte final da viagem, outra arma será significativa. Quando o último ônibus é assaltado, Adjara ia ter sua pochete-ventre roubada, Vishaa a protege empurrando o assaltante que lhe apontava a arma na cabeça. Na sequência, o assaltante mata Vishaa com um tiro no peito. De forma cruel, a arma aqui representa o pior tipo de violência masculina contra as mulheres - a que provoca o feminicídio. O gesto de Vishaa é simbólico neste ponto. Ela se revoltou porque outra mulher estava sendo violentada. Violentada em seu sagrado ventre, de acordo com a interpretação desta crítica.

E foi solidária com a mulher que estava sofrendo isso, Adjara, dando um basta na violência machista pela qual estava passando, sendo agredida em um lugar (simbólico) de seu corpo que deveria ser intocável. Pagou com a vida por isso. Adjara desaba no chão em choque pela morte de Vishaa. É a única parte do filme aonde há uma angulações para mostrar sentimentos mais fortes. Ela está em plongé, com a câmera enquadrando de cima para baixo em um ângulo próximo a 45 graus, usado no cinema quando uma personagem ou objeto está em posição de inferioridade. Neste caso, ela está derrubada pelo horror da violência e pelo luto do fim trágico da vida de sua companheira.

Após este mórbido acontecimento, temos a cena da praia, aonde as 3 amigas restantes se sentam olhando para o oceano, em luto total. A roupa de Adjara é a mesma do início do filme, só que com a cor extremamente desbotada agora em relação à cor viva no início. Só lavagens sucessivas podem desbotar a cor de uma roupa. Ela não lavou as roupas nos seis dias de viagem que passou. E ainda que lavasse, não deveria ter uma perda de tonalidade tão expressiva. Não há dúvida que a direção de arte aqui foi usada para simbolizar o efeito devastador da viagem sobre Adjara. A tristeza e a dor passaram a fazer parte de sua vida de forma mais contundente - embora ela assuma a certo ponto da trama que apanha do marido.

Na parte final temos o epílogo do filme, como já dissemos, posicionado antes do clímax. Adjara e Emma vão visitar a família de Vishaa e, no velório, o azul das roupas de alguns presentes está agora sim associado à tristeza. Mas há cores quentes também na cena, o que não combina com a psicologia das cores em cinematografia. Porém talvez haja uma mensagem ai de que mesmo com a morte a vida continua.

E o clímax! Adjara discursa sobre o valor da vida enquanto as três amigas sobreviventes são mostradas na sequência de suas vidas. A última é Sali. Deitada na cama refletindo com o semblante de inocência perdida e de ferida profunda. Mas forte. Ela se levanta da cama e se dirige até onde onde mora o noivo. O encontra dormindo e o acorda apontando a arma. Usa o celular para chamar a polícia, e atira na sequência, finalizando o filme no ponto mais alto na cena mais efervescente. O revólver do soldado que a estuprou é símbolo da violência masculina que a mulher não aceita mais e que a dá de volta ao seu agressor, na mesma medida que o mundo masculino a agrediu.

A trilha sonora e a voz feminina

Não há grandes desenvolturas da trilha sonora e nem da trilha musical. Esta segunda usa um tema suave recorrente para marcar momentos emotivos do filme ao estilo Central do Brasil. A sonoplastia do filme é básica, usando o que se pode captar pelo microfone diretamente nos takes (gravação direta das cenas) e acrescentado na pós-produção aos planos (imagens que ocorrem entre um corte e outro após montagem do filme). Nenhum filme pode fazer os sons que lhe são importantes na trama todos captados na gravação direta. Sempre é necessário acrescentar esses sons artificialmente após as gravações.

Mas há um uso importante da trilha sonora a se destacar. Fora ele há uma cena em que o som é usado para complementar a montagem. É na fronteira em que acontece o estupro de Sali. Ela foi detida pelos soldados do exército porque levava remédios de um país para o outro de forma ilegal. Esse tráfico de fármacos era o negócio que o noivo dela escondia dela desde sempre e pelo qual a usou como "mula". A cena em que os soldados prendem Sali, começa com um plano mostrando Adjara e as outras duas do lado de fora da sala do interrogatório. Adjara está em destaque, mais ou menos no centro do plano.

O som do diálogo do lado de dentro da sala é possível de ouvir para o público, mas não para as personagens. E isso o plano está fora da sala, corta para uma sequência de planos no interior da sala e depois volta para o enquadramento anterior. O som nos indica que o acontecimento principal da cena é no lado de dentro, mas a reação ao desfecho que o filme quer mostrar está do lado de fora. A montagem usando o som audível (só para o público) do lado de fora é peculiar nesta cena. A trilha sonora ajudou totalmente a construir a plástica que a sequência tem e o que Apolline Traoré queria destacar - a preocupação de Adjara com Sali.

Essa preocupação é o que faz o grupo de amigas perceber que um dos soldados vai estuprar Sali, posteriormente, e essa preocupação que as faz conseguirem defender a adolescente, interrompendo o agressor no ato violento. É essa cena que motiva, no final do filme o clímax, já destacado na análise da Mise en Scéne. Mas a trilha sonora, na opinião desta crítica tem destaque principal nas falas das personagens. E aqui ela é usada para caracterizar a protagonista naquilo que a diferencia de verdade de todas as demais.

Adjara questionando soldado por taxa indevida
Não são as roupas que ela usa, não são os objetos em seu entorno, não é a maquiagem e nem a sua beleza física. Adjara é única no filme porque somente ela tem extrema preocupação com o ser humano, entre todas as personagens no filme. E é essa preocupação que possibilita a história prosseguir. Na fronteira onde Sali é estuprada e elas tem que fugir para o mato após matar o agressor, um soldado conseguiu achar Adjara. Mas a deixa ir. Por que? Porque antes dessa sequência, Adjara comprou saquinhos de água para si e para as amigas e deu um dos saquinhos de presente para ESSE soldado.

Mas não é o gesto que a distingue em definitivo. Ela é a única pessoa ente todos que se preocupa com os direitos humanos. Ela é a única que questiona as taxas indevidas. Quando uma mãe com a criança no colo foi impedida de prosseguir viagem e ia ser abandonada sem dinheiro à beira da estrada, ela invoca ela rouba as chaves do motorista e peita o policial que não deixou a mãe embarcar. Ele a proibiu de subir porque ela não tinha dinheiro para pagar uma taxa inexistente ao policial.

Adjara faz com que todos os passageiros exijam que a mãe possa entrar no ônibus. E ela consegue. Ela é a voz de conscientização do povo no filme. Ela é a voz que reivindica justiça perante a iniquidade da corrupção. E isso o que a torna a personagem mais forte de todo o filme. A personagem que brilha mais alto. É a sua voz de consciência pelos direitos das pessoas. Algo que só se processa pela trilha sonora.

Conclusão

O filme "Fronteiras" peca por não ter distinção entre primeiro e segundo ato, já indo para a aventura de cara e demorando demais a desenvolver as 4 personagens principais. Mas esse desgaste proporcionado por essa narrativa não usual é corrigido pelo clímax, no terceiro ato, aonde a montagem o coloca antes do epílogo - de forma brilhante, na opinião desta crítica.

A psicologia das cores está deslocada em várias partes do filme, e parece que só 3 cores tem um significado realmente válido na trama - o vermelho, o azul e o branco. Porém, não há psicologia fixa para o azul, talvez a cor mais recorrente na trama. Em alguns momentos representa alguma coisa, em outros outra e não é usado em sua função de cor fria (remetido a sentimentos melancólicos) se não no fim do filme.

Mas estes aspectos talvez também sejam propositais. Apolline Traoré, segundo informações que circularam no debate da sexta feira (20) estudou cinema aqui na América, nos EUA. Esse arcabouço de informações sobre Direção de Fotografia e psicologia das cores dificilmente não é do seu conhecimento. Tanto que vemos como a direção de arte, embora esteja em segundo plano em relação às interpretações das atrizes, é bem usado pela diretora.

Na cena que antecede o assassinato de Vishnaa, por exemplo, não há nenhum vermelho destacado para usar a Mise en Scéne como forma de antever o perigo que vai acontecer, a morte sangrenta. Só um elemento antecipa a tragédia da icônica cena. Antes do assalto, Vishnaa aparece num plano com um tique nervoso na perna. Adjara percebe a ansiedade dela e lhe pergunta o porquê do nervosismo. Ela explica tudo o que aconteceu com a irmã e que estava indo para o casamento exatamente para selar a paz em sua família.

É um gesto da atriz que é usado para antecipar o assassinato da personagem na fotografia do filme, junto com o diálogo das amigas, e não objetos ou cores. Corrobora nossa tese de que pode haver uma intenção de Apolline Traoré em usar de realismo no filme, deixando de lado as técnicas básicas da cinematografia profissional para construir a mensagem que pretendia transmitir. 

A vida é cruel para as mulheres negras em seu próprio continente onde são maioria étnica absoluta, não importa em que país estejam. Em todas as fronteiras, os homens se aproveitam delas para extorquir, violentar, abusar, corromper e exercer poder. Sua união e solidariedade é o único meio que lhes permite sobreviver a própria travessia perversa que a vida lhes impõe.

Se ela quis mostrar isso como acontece na realidade ao máximo, então faz sentido quebrar essas regrinhas da narrativa cinematográfica. Afinal, não acordamos e dizemos "nossa hoje vou ser assassinado então vou usar o azul para expressar minha tristeza perante o fato". Talvez (talveeeez) seja esse o motivo das cores deslocadas. E os primeiro e segundo atos fundidos para que o público se cansasse de propósito, como se estivesse viajando junto com as heroínas do filme.

O certo é que não há lugar onde as mulheres não sofram no planeta Terra e o filme mostra isso com um preciso retrato fictício de realidade, buscando mostrá-la como ela é, sem tantas maquiagens ou romantismos. Uma superação da técnica pelo aspecto humano.

Paolo Gutiérrez é jornalista e crítico amador de cinema.                                   

                              


             

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